2010/08/24

CINEMA_O (E)TERNO RETORNO ÀS ORIGENS_2. AQUELE QUERIDO MÊS DE AGOSTO

2.1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Muito se tem falado do filme. E as opiniões, como em qualquer obra de arte, dividem-se. Com efeito, para uns, o filme constitui um hino ao melhor do que se tem feito na área, e, para outros, a fita é má de mais para ser vista. Quer dizer que a película de Miguel Gomes cumpriu a sua função primeira: vencer a indiferença do espectador que, quer se queira, quer não, se habituou, quiçá em demasia, ao cinema pronto-a-consumir, isto é, a uma arte que não implique um qualquer esforço intelectual, nem faça apelo a uma configuração semântica demasiado complexa. Em suma, que não o interpele demasiado.

Com efeito, num mundo globalizado, a arte cinematográfica deixou de ser nacional e passou a assumir-se como uma representação mais ou menos estereotipada dos valores, dos sentimentos, dos costumes e das tradições, não de um povo concreto ou de uma região assinalada no mapa-mundo, note-se, mas de uma cultura transnacional e alinhada com os cânones ditados pelas superproduções.

Nesta perspectiva, não há espaço, doravante, para a diferença, para o singular, para o prosaico. O cinema tornou-se um espaço cósmico e representa, hoje mais do que nunca, o homem acima do solo, um homem sem Estado-nação, e, por conseguinte, sem laços gregários que o liguem à comunidade. Em resumo, o cinema representa o homem universal, apátrida e, em último recurso, desfasado das suas coordenadas deícticas (espácio-temporais).


Assim é! Já lá vai a era dos tanques públicos, onde as lavadeiras davam cor às vidas locais – lavando a roupa suja. Já lá vai a época dos fornos comunitários, onde o homem cozinhava o pão e a vida alheia a lume brando. Já lá vai o tempo em que as ceifas do milho ou do centeio, as desfolhadas e as malhadas faziam desfilar as personagens maiores do pequeno burgo. Já lá vai o tempo em que a matança do porco constava dos pasquins da freguesia e era anunciada pelo cura local, com pompa e circunstância, no epílogo da homília dominical...

Ora, o realizador, com Aquele Querido Mês de Agosto, obrigou o homem (i. e. o espectador) a voltar às suas origens gregárias. Fê-lo sair da sua pretensa natureza cibernética e interplanetária, forçando-o a olhar para dentro de si. Fê-lo sair do seu exílio para o fazer regressar à pólis. Com efeito, Miguel Gomes, ao lançar mão de um naipe de histórias pitorescas, de pequenas narrativas individuais e/ou comunitárias, confronta o espectador com a sua verdadeira natureza humana: o homem é simultaneamente outro e o mesmo.


2.2. O (E)TERNO RETORNO ÀS ORIGENS

Ora, vivemos hoje – nunca é de mais repeti-lo –, num contexto sui-generis, a saber, o da especialização das tarefas, o da racionalização dos meios, o da optimização do produto, em suma, vivemos, doravante, num contexto de certeza científica. Que fez o homem, entretanto? Assistiu, aparentemente impávido e sereno, ao pretexto da mudança, quer dizer, ao advento do Estado-Nação e do Estado-planificado, que, entre outras coisas, promoveu a educação de massas, institucionalizou a escolaridade obrigatória e assumiu, pelo menos parcialmente, a produção artística e, a fortiri, a produção cinematográfica.

Claro que um tal contexto da mudança (cuja unidade conceptual resume as doxa do mundo hodierno), traduz, a meu ver, o conflito latente entre, por um lado, o edifício da pós-modernidade (ao qual ainda não nos adaptámos) e, por outro, a psicografia do homem (que não terá ainda abandonado os seus comportamentos modernos). Assim, todos nós somos, hoje, confrontados de forma mais ou menos violenta com (a) a flexibilidade da economia (assente, no essencial, em tecnologias e processos de produção cada vez mais fluidos, em novos tipos de relação entre o produto cultural e o consumo, em novas utilizações do espaço geográfico e, por fim, numa constante rotação das tarefas momentaneamente atribuídas …), (b) com o paradoxo da globalização (que, por um lado, conduz à interiorização de novos e longínquos códigos de valores e, por outro, ao reforço dos bens de consumo nacionais, isto é, à xenofobia… ), (c) com as certezas mortas (na justa medida em que a ciência perdeu toda a credibilidade e em que a crença pia no Grande Arquitecto, por exemplo, foi irreversivelmente destituída ), (d) com o modelo organizacional caleicoscópico (que é função da adaptabilidade, da criatividade, da ductilidade do indivíduo…), (e) com a volatilização da consciência individual (em que a imagem instantânea e a representação simulada do espectáculo cinematográfico, por exemplo, se substituem às suas coordenadas deícticas – transformando, definitivamente, o homem pós-moderno numa criatura auto-referencial e autotélica… ) e, enfim (f) o com fenómeno recente da simulação segura (superveniente da crescente sofisticação tecnológica, em que a imagem mediatizada de um espectáculo ocorrida em Pardieiros, por exemplo, supera a sua própria representação hic et nunc, i. e. única e irrepetível…). Todos nós, dizia eu, nos debatemos, hoje em dia, num contexto de alteridade, mas ainda não somos – hélas! –capazes de dar uma resposta positiva e eficaz às novas variantes contextuais. Razão pela qual a condição pós-moderna do homem não pode deixar de ser complexa, contraditória, ambivalente – em suma, transitória. Por definição (pois que a mudança implica que o processo se encontra em aberto…).
Ora, Miguel Gomes corrobora, antes de mais, os universais humanos e coloca em evidência o direito à diferença e à singularidade, ou, dito por outras palavras, enaltece as subculturas sempre – ou quase sempre – subalternizadas e ridicularizadas. E, ao fazer isso, o realizador instaura um verdadeiro diálogo entre as várias (sub)culturas, quer dizer, estabelece uma solução de compromisso – e de continuidade – entre todas as formas do saber/ser e do saber/estar, pelo que, quer se trate da música erudita ou do fenómeno pimba, todas as manifestações artísticas merecem estar representadas no todo cultural do país.


Mas não só. Aquele Querido Mês de Agosto redimensiona, por outro lado, o papel de herói, aproximando-o das teses de Tcheckov , pois que o Paulo Moleiro (que falha um dos saltos carnavalescos…) o Domingos (que é publicamente desafiado a assumir a sua virilidade…), o Manuel (que atribui a sua cura ao maravilhoso…), todos estes postais ilustrados de uma paisagem humana eternamente virgem são, cada um a seu modo, anti-heróis. Aliás, o filme, alegadamente sem actores nem roteiro, demonstra, por outro lado, que cada um de nós possui uma carga dramática inata, quer dizer, que cada um de nós oculta um actor em potência, pois que todos nós somos capazes de representar, cada um a seu modo, o papel que nos cabe, bon gré mal gré, na vida de todos os dias...


Poder-se-ia pensar que esgotamos a análise. Mas tal não o caso. Na realidade, o filme levanta outras questões, igualmente importantes. E uma delas, é, sem dúvida, a questão da pureza documental, cujo conceito permanece, com certeza, uma utopia, mas, mesmo nesta matéria, o realizador consegue transmitir uma certa ilusão de óptica, pois resiste à tentação de dividir os segmentos marcadamente documentais das sequências poeticamente ficcionais – de que resulta uma fusão dos (sub)géneros, uma colagem stricto sensu e uma espécie de solução de continuidade do todo fílmico. A estratégia processual merece, aliás, reparo, na justa medida em que, por esse viés, Miguel Gomes faz obviamente aumentar a espectacularidade técnica e a beleza estética da sequencialização.


De resto, um outro aspecto não menos importante prende-se com a validação diegética do cenário, que, no meu entendimento, evita o seu natural esgotamento. Refiro-me, como é evidente, à dimensão metalinguística do filme, cuja estratégia não me parece de legitimação do dito (do visto), mas que se prende, antes, com a introdução intencional de um novo paradigma comunicacional. Com efeito, a entrada em cena do realizador e do sonoplasta coloca a diegese en abyme, e, cela étant, a cena dialógica entre interlocutores de primeira instância (realizador//sonoplasta) e de segunda instância (realizador/sonoplasta//espectador), assume-se como uma estrutura metadiscursiva de alto valor metacognitivo - em que uns e outros se inscrevem inexoravelmente na contingência humana, em que todos (produtores, realizadores, actores, espectadores) se subordinam, enquanto indivíduos, à dúvida, ao princípio da incerteza e ao espectro do fracasso.


Destarte, a desfuncionalização do indivíduo ganha foros de humanismo e de co-responsabilização face à (des)construção de um mundo complexo, ambivalente, contraditório – em suma, real. Tal como a objectiva a terá ingenuamente captado.

Face ao exposto, parece claro que Aquele Querido Mês de Agosto alarga as fronteiras do género e, assim perspectivado, o filme pode ser entendo como experimental, na medida em que carece de uma estética da recepção capaz de legitimar o produto. É, aliás, nesta vertente, que tem sido ventilada a música dos clássicos que o ouvido pretensamente selectivo de Vasco Pimentel parece ter, de forma indevida, registado. Mas esse é o som que sai das entranhas da terra. É o som que está impressivamente gravado na memória colectiva daquela gente. É o som que paira por aqueles montes e vales. Não. Não é uma música qualquer: é o canto das almas. Lá onde os espíritos simples se reúnem e comunicam com o Olimpo. Claro que não é um lugar comum, nem tampouco cosmopolita como Paris, Londres ou Lisboa. Não. Aqueles sons estranhos que supostamente não deveriam ter sido registados acontecem, de facto, em terras de Arganil e de Oliveira de Hospital. Mas também no Gerês e em Tavira. Ocorrem em Agosto. Portugal está à mesa. Uma grande mesa rectangular que vai da zona raiana à praia – ou quase.

2.3. CONCLUSÃO

Poder-se-ia pensar que a obra de Miguel Gomes assenta numa crítica à pós-modernidade. O realizador, todavia, parece interessado, apenas, em cantar a possibilidade de existir, em perscrutar os cantos mais recônditos da alma das gentes e de captar os habitantes com uma curiosidade quase juvenil. Mas ao crítico pede-se-lhe que não caia no logro da inverosimilhança analítica. E a crítica ao mundo hodierno, essa, está lá. Paradigmática e sintagmaticamente . Que alívio! Afinal o homem da era global não mudou. Não desapareceu. Está lá. Numa interioridade que é sua. Que é nossa. Ah! E tem endereço próprio: http://www.osomeafuria.com/films/3/1/.
© Manuel Fontão

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