2009/11/29

UM FEIXE DE LUZ NA CENA VENEZUELANA_06_SELECÇÃO DE OBRAS

Conforme o exposto na secção anterior, ainda que em guisa de vol d’oiseau, percebe-se o escopo e a importância de Luz Urdaneta no contexto da dança venezuelana, cuja obra se pauta pela sua grande profusão e variedade temática. Claro que, dado o quadro restrito deste trabalho, passo sob silêncio as realizações cénicas de grande impacto e de exuberância de meios, como foram Selva, la Isla, Jesucristo Superestrella ou El violinista Sobre el Tejado, que lograram obter, num passado recente, uma grande receptividade do público e o aplauso da crítica.

EXODO é uma obra sobre a solidão do ser humano confinada à frieza e à dureza do espaço urbano, em que a emoção se traduz, essencialmente, pela nostalgia… do homem primitivo. A música (tango) assume-se, assim, como um grito que sai das entranhas e a nudez do espaço cénico (inclusive o parco vestuário dos bailarinos e a luz coada...) pretende afirmar-se como uma metonímia do espaço psicológico e íntimo do homem contemporâneo – submerso na cacofonia e na patologia.

OTO EL PIRATA, por seu turno, é um conto para todas as idades e, como tal, abre-se ao maravilhoso (desemboca no happy end). Aqui, é possível vislumbrar-se o imaginário sul-americano (desenrola-se no coração da Amazónia...) e a moraleja (que consiste no trabalho suplementar do espectador) prende-se, sobretudo, com o valor da amizade – desinteressada e gratuita. O espectáculo vale pelo colorido da indumentária (que se caracteriza pela exuberância) e remete o espectador para um mundo longínquo, em que os costumes ainda não estão padronizados pelas convenções do mundo civilizado. De resto, estas duas obras aproximam-se, pela sua temática, do mito de amalivaca.

TRAVESÍA (1994) consiste numa viagem de barco (metáfora da própria vida), em que os passageiros (sete) navegam sobre um mar de emoções e carregam o pesado fardo das suas existências. Neste trajecto – que é o nosso! – as personagens (intemporais) colocam em questão o eterno sentido da vida, partilham a(s) sua(s) dor(es), a(s) sua(s) ilusão(ões), mas a comunicação funciona mais como uma terapia da alma, porque a resposta, essa, é do domínio de uma hermenêutica da intimidade. O vestuário, exuberante e colorido, configura a variedade e multiculturalismo do povo latino-americano e relaciona-se com a origem do homem – arquétipo recorrente na sua obra.

Todavia, a obra-prima de Luz Urdaneta é, na minha opinião, CLARO DE LUNA, uma obra que se centra no arquétipo do feminino, até porque marca uma nova relação da autora com a sua própria obra. Concebida para ser interpretada apenas por mulheres (Mariana Tamaris, Vanesa Lozano, Anakarina Balza, Arais Vigil e Nova Rowinsky), a obra demorou, segundo a própria coreógrafa, três anos a ser gerada. Como Luz Urdaneta explicou: Claro de Luna expresa en sus movimientos a esa mujer que siempre ama, que cae y se levanta, que tiene fe y esperanza, su eterna lucha, su fortaleza y fragilidad al mismo tiempo, la complicidad y la perseverancia ante el mundo.
Com efeito, CLARO DE LUNA é uma obra em que as cinco bailarinas compartilham o mesmo espaço cénico, mas sem assumirem, todavia, o papel de personagens, pois que, embora a obra pressuponha uma estrutura narrativa, a verdade é que não existe densidade dramática ou sociológica (do ponto de vista teatral). Trata-se, antes de um jogo cénico em que a comunicabilidade assenta, sobretudo, na sublimação dos valores com que a cultura (designadamente, a ocidental) a investiu. Assim, o tempo não é o nosso, o hodierno, mas, antes, um tempo mítico, reminiscente e obliterado pela recordação, pelo onírico, e a mulher, essa, é o arquétipo de todos os tempos – um ser que não nasce mulher, mas que se torna (Simone de Beauvoir).
Em suma, esta clara alusão ao sentimento feminino – e à sua força uterina – orienta todo o discurso coreográfico da obra e as cinco figurantes servem, assim, de antecâmara para a transição das cenas – as quais se diluem no espírito colectivo ou modelar.
Acresce afirmar que a sonoplastia, composta por Piazzola, Rota, Ginastera, Karaindrou, Villalobos (entre outros) acompanha a intimidade (uterina) dos corpos e, mais do que isso, explora o seu mundo interior (metonímia do discurso publicitário…), .ao passo que o desenho do vestuário (da responsabilidade de Efrén Rojas) são plenos de sensualidade e de inocência Na mesma linha de graça e harmonia, os elementos cenográficos (sob a égide de Benjamín Hierro) e a luminotecnia (assinada por Carolina Puig) contribuem para o carácter onírico da obra.

© Manuel Fontão

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