2009/11/13

A PRETERIÇÃO

A velha figura de retórica conhecida sob o nome de preterição parece, hoje, mais do que nunca, na moda. Com efeito, as bengalas linguísticas do tipo eu não quero dizer que, dir-se-ia que, não me passa pela cabeça essa questão são mecanismos discursivos de natureza psicolinguística muito curiosos, pois que se finge não ter dito aquilo que justamente... é afirmado.
Assim, quando eu ressalvo a factualidade enunciativa, afirmando, por exemplo, que eu não quero dizer, a verdade é que, do ponto de vista vericondicional, o tenho dito, quando eu recorro ao modal dir-se-ia (que) entendo não assumir o que todavia asserto e quando me escuso sob o pretexto de que a ideia não me passa pela cabeça, a verdade é que ela, a ideia, atravessou diagonalmente o meu pensamento, com esta pequena (grande) diferença que eu a apresento ao meu interlocutor como não tendo sequer aflorado ao meu espírito...
Desta feita, foi a vez do ex-jogador de baseball, o dominicano Sammy Sosa, que, no decurso da cerimómia dos Grammy Latinos apareceu com um tom de pele bem mais claro, a contrastar, por exemplo, com os seus lábios bem mais carnudos... (cf. caixa).
Não tenho nada contra as mudanças de visual. Aliás, acho mesmo que as pessoas devem primar por uma certa alteridade de traços, quanto mais não seja para quebrar a monotonia do déjà vu, mas há que assumir a postura, caso contrário soa a falso, i.e., soa a impostura. E, neste particular, é evidente que, aos olhos do observador ressalta, desde logo, o inevitável paralelismo com o malogrado Michael Jackson e a sua obsessão pelo mito do homem branco...
Todavia, o próprio visado pela crítica, legítima, sóbria, incontornável, enjeita categoricamente tal aproximação: "No quiero parecerme a Michael Jackson".
Mas parece. E depois?...
Interrogo-me se a figura do discurso ainda pertence ao domínio da preterição ou se já estamos no reino do paradoxo... para não dizer, no reino da mentira.
Aparentemente, não falei de mentira. Mas ela, a mentira, está lá!...




© Manuel Fontão

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