1. COMENTÁRIO
"Toda a mudança é um processo micropolítico"
Hargreaves, Andy. Os Professores emTempo de Mudança, p. 262.
É, hoje, um lugar comum afirmar que as sociedades em que vivemos se encontram sob o signo da mutação, que o mundo contemporâneo vive mergulhado numa crise permanente de valores e que o homem da economia global perdeu, irremediavelmente, o seu centro de gravidade emocional.
Porquê? Mas vejamos! É que, até aqui, sabíamos justamente para onde íamos, pois que a estrada começava mesmo ali... Doravante, bom, de hoje em diante percebemos apenas que o caminho, esse, acabou - ele bifurcou-se numa profusão inextricável de redes de comunicação, numa pluralidade de vias de banda larga, cujos objectos técnicos – a internet, a televisão digital, o scanner, etc., não são apenas epifenómenos da ciência e da técnica, mas também o resultado de aspirações mais ou menos difusas. O proibido, o inacessível, o longínquo, o infinito, o sonho, tudo isso está, hoje, à distância de um simples clique. Mas o pesadelo, a desilusão, o abismo também se encontram mesmo aí ao lado. Que escolher então? E quem é que detém a chave suprema do segredo? Em quem confiar, pois? Mas onde é que pára o kibernetes?
Verdadeira hermenêutica do pensamento humano…
Numa primeira leitura de Professores em Tempo de Mudança, poder-se-ia pensar que o livro dedicaria um espaço de alguma forma subsidiário e marginal ao ensino propriamente dito e, por conseguinte, aos professores stricto sensu. Na verdade, só partindo do pressuposto maximalista é que é possível perceber o ensino numa perspectiva organizacional, ou melhor, só partindo da premissa de que a escola pode ser compreendida à luz da sociologia das organizações, é que as grandes áreas temáticas da obra se identificam de forma estreita e imediata com o ensino e com os seus actores (pois que, partindo da hipótese minimalista, chegaríamos, por certo, à conclusão de que a escola seria perspectivada como uma empresa – o que não é verdade...)
Nesta óptica de largo espectro, a mudança torna-se sinónimo, ou melhor, um hiperónimo de dinâmicas interpessoais e intergrupais, o tempo é percebido como recurso, como percepção (observável) e como objecto de luta, o trabalho é sentido como emprego, ou seja, como um conjunto mais ou menos variável de tarefas e de relações humanas estruturadas de um modo muito particular e, por fim, a cultura traduz-se num conjunto mais ou menos aleatório de práticas e de subculturas que, a meu ver, coexistem de forma não muito pacífica num mesmo espaço, no caso vertente, num determinado estabelecimento de ensino.
Importa por conseguinte realçar, antes de avançarmos na nossa análise, que as teorias do campo empresarial não podem ser aplicadas de forma mecânica e imediata ao domínio específico do ensino. E isto por uma razão muito simples: é que uma escola não é propriamente uma empresa. Certo, ambos os modelos organizacionais partilham comportamentos muito semelhantes, mas, como noutras áreas sistémicas, a analogia deve ser sempre utilizada com redobradas precauções. Na verdade, a escola não é uma instituição com fins lucrativos, não obstante o diploma continuar a ser sancionado pelo mercado de trabalho, ainda que de forma mediata e diferida... Por outro lado, o processo de ensino/aprendizagem não se desenvolve num tempo linear, objectivado, externo – em suma, racionalizado (muito embora as tentativas de taylorização da escola não sejam tão raras quanto poderíamos supor). Com efeito, ao contrário da empresa, que se rege por critérios rígidos e inflexíveis de produção, o organograma escolar inscreve-se numa lógica fluida e caleidoscópica. Além disso, e mais importante do que o acaba de ser dito, o aluno não é um (sub)produto, pelo menos no sentido mercantil do termo (ainda que represente uma mais-valia, traduzida, na circunstância, pelo sucesso ou insucesso de uma certa ordem cultural…), mas, antes, uma realidade extremamente complexa, como veremos infra.
O livro levanta, pois, um conjunto de questões de suma importância para os professores e para o ensino, e, neste sentido, o problema de fundo, parece-me, é o de legitimar de forma lógica e racional, não apenas o discurso, mas também o contexto da mudança. Ora, nessa matéria não faltam as motivações e os argumentos, como foi cursivamente aflorado no intróito desta secção.
De facto, em tempo de crise de identidade, numa era em que o que é hoje cientificamente verdade, amanhã será certamente questionado, não é de admirar que a Escola, enquanto conjunto difuso de representações sociais, esteja sob vigilância apertada: ela constitui uma zona frontal em toda a linha, dado que é aí justamente que todos nós depositamos a nossa esperança – e todo o nosso desespero. Não admira, pois, que a Escola seja o receptáculo de sentimentos tão diversos quanto contraditórios. Aliás, curioso e sintomático desta tensão, quer dizer, desta correlação de forças antagónicas e ambivalentes na sua génese, é o facto de todos apontarem o dedo à escola, de todos falarem do estado em que ela se encontra, confirmando absolutamente o desabafo de A. H. Halsey (para quem a escola seria, afinal de contas, “o cesto dos papéis da sociedade.” (op, cit.: 5), sem que se vislumbre uma solução de compromisso – e de continuidade. Ou, por que não ousar dizê-lo, de ruptura…
No prolongamento deste pensamento, constatamos que a prática política não é insensível à matéria. Longe disso. Percebamos o que está em jogo – e a sociologia das organizações está aí para nos ajudar na tarefa: é que uma das formas ancestrais de afirmação do poder é que ele possua um cunho pessoal, uma espécie de assinatura de autor. Assim, do ponto de vista organizacional, a mudança surge como uma forma de legitimação político-partidária, mesmo nos regimes de cariz (pseudo)democrático.
Assim é. A Educação, ponto de convergência e de intersecção de vários vectores socioeconómicos é, não raras vezes, instrumentalizada e assume-se, de resto, tal como Althusser muito bem demonstrou, como um importante aparelho ideológico do Estado. Quem é que não reconhece, com efeito, que, por detrás da unificação linguística (em detrimento dos dialectos), se encontra o medo mítico da perda da identidade nacional? Quem é que dúvida que, por detrás da escolarização obrigatória, se esconde(u), entre outros motivos, a percepção dos impostos por parte do Estado? Quem é que está pronto a negar que, por detrás do alargamento da escolaridade mínima obrigatória, num determinado ponto da História (como ocorreu, por exemplo, com a Reforma de 1973, que aumentou para 8 anos a escolaridade mínima obrigatória…), se encontra a diminuição das expectativas de emprego (ou melhor, de empregabilidade, para utilizar uma linguagem pós-moderna) e de ascensão social ou, pelo menos, de diminuição da sua força e prestígio corporativos (que a criação das novas Faculdades de Medicina consubstancia)? Quem é que não reconhece que, no fundo, as reformas de hoje têm mais a ver com as variações morfológicas do corpo docente e do seu redimensionamento ou da sua reciclagem curricular do que com uma vontade genuína de mudança de paradigma, que deveria traduzir, na superfície da napa social, uma expressão supostamente fiel das necessidades reais e profundas sentidas por um determinado estado de evolução civilizacional?
Parece não haver grandes dúvidas de que as políticas educativas andam, muitas vezes, a reboque do poder temporal e a História infelizmente fervilha de exemplos de toda a ordem (a mentalidade colonialista do Estado Novo, por exemplo, começava na escola com uso do uniforme – a famigerada bata branca…). Porém, desenganem-se os políticos, pois que tal facto não legitima, por si só, a mudança. Na verdade, para haver mudança, torna-se necessário que exista fenomenologicamente uma propensão interior, é preciso que se verifique um desejo mais ou menos latente de mudar algo – e esse desejo, ontem como hoje, é o resultado, por certo, de um rol de necessidades que, na prática, se traduzem por um certo mal-estar mais ou menos crescente.
Ora, na base do mal-estar encontramos sempre uma estrutura paradoxal. É uma espécie de conflito mais ou menos implícito entre o pensamento e a razão, cuja síndroma é apanágio das sociedades nas quais vivemos, agimos e falamos. Com efeito, o ser humano percebe vagamente os benefícios, por exemplo, da flexibilização dos processos de trabalho, mas está imbuído de teorias burocráticas e de estereótipos próprios de rinoceronte (tal como Ionesco tão bem ilustrou na sua obra epónima…). Ele aplaude aprioristicamente a globalização, mas não compreende o seu efeito de ricochete. Ele insurge-se convictamente contra as certezas absolutas que o fixam no tempo e no espaço, mas anseia por elas. Ele entende que os novos modelos organizacionais, caleidoscópicos, dinâmicos, flexíveis, são mais ajustados à sua natureza pós-moderna, mas prefere-lhes o estatismo (cimentado, por exemplo, nas trajectórias de carreira comodamente inscritas numa lógica de benefícios não-motivados) e a cristalização do edifício moderno (de que as célebres e obsoletas diuturnidades da função pública – e não só – constituem um exemplo paradigmático). Assim é, de facto. Ele força a consciência para lá dos seus próprios limites, mas teme perder a sua consistência. Ele controla a realidade digitalizada, mas não tem acção sobre o concreto. Em suma, o ser humano percebe a discrepância significativa entre o velho mundo em ruínas (a modernidade) e o novo quadro de referência (a pós-modernidade), mas as suas roupagens estão ainda envoltas em representações claramente insuficientes, pelo que o processo de mudança esbarra invariavelmente com o reconhecimento de uma escola sentida como anacrónica…
Falámos até aqui de educação, enquanto modelo sistémico. Impõe-se agora que foquemos, ainda que de forma sucinta, uma outra questão, igualmente fulcral, na minha opinião, e que consiste na compreensão da categoria “professor”. Quem é, ao certo? Será ele um intérprete da arte de ensinar, um detentor de um dom mágico e inato que já vinha inscrito na sua narrativa individual? Ou será ele uma espécie de missionário que terá, porventura, respondido a uma voz mítica e sagrada, e, como tal, mais não fez do que dar expressão à sua vocação inata, a exemplo do demiurgo? Ou será ele, antes, um técnico, quer dizer, um aprendiz que, graças à sua ductilidade, foi assimilando os segredos da sua profissão, passando por várias etapas rumo à eficácia, à eficiência, à proficiência - ou seja, trilhando o percurso específico da tecnicidade requerida que, nos dias que correm, se designa por excelência?
A questão não pode ser tratada de ânimo leve. É que, enquanto um mecânico, por exemplo, passa por estádios de desenvolvimento profissional pragmaticamente definidos (razão pela qual a sua competência é objectivável, pelo menos em termos de prossecução ou não de um estádio final - a desmontagem/montagem integrais de um motor, o que fará dele, de resto, um bom ou mau estruturalista), já o docente, esse, nunca chegará provavelmente a obter essa recompensa, pois que a natureza do seu trabalho permanece em aberto ad infinitum. Na verdade, perante este estado de coisas angustiante, urge definir profissionalmente o conceito.
É que, em boa verdade, o professor constitui uma entidade demasiado complexa e multifacetada. Ah sim! Longe vão os tempos em que o ensino, em geral, e o professor, em particular, estavam envoltos numa auréola mais ou menos sacrossanta, pelo que, entre o Mestre Régio (ou Mestre de ensinar ou Ensina-meninos) e o Professor da era das novas pedagogias pouco ou nada há em comum. Perceba-se o escopo da asserção: o docente ficou sem pedestal (magnificamente simbolizado pelo traço folclórico do estrado, reconhecimento físico do seu poder magistral), quer dizer, ele, o docente, aproximou-se do aluno, que, por seu turno, viu reconhecida a sua complexidade, deixando de ser percebido apenas como entidade abstracta (como se pode aliás confirmar pelas estruturas dialógicas coloquiais e (pseudo)familiares tal como Tu, o nome de baptismo; etc), para passar a ser concebido como uma entidade biopsicossocial, ou seja, como um indivíduo dotado de um organismo psicossomático e inscrito num determinado meio social.
Paralelamente, os métodos activos, fundamentados no princípio do learning by doing (cf: as teorias propostas por Claparède, Decroly, Freinet, Dewey, Montessori – e a lista fica em aberto…), vieram demonstrar, entre outras coisas, a importância do ensino e da aprendizagem pela descoberta, o que implica reconhecer a utilidade científica da pedagogia do erro – que, desse modo, deixou de ser anomalia para se tornar analogia. Neste sentido, preconizava Montessori, devemos dar à criança oportunidades para que ela suje, quebre, deteriore os materiais “didácticos” (como por exemplo, uma mobília branca, um quarto pintado fresco…), em suma, devemos facultar ao aprendente as condições materiais óptimas para que ela aprenda, ou melhor, para que ela apreenda a descoberta... pelo desvio. Do mesmo modo, podemos avaliar o grau de eficácia de um determinado processo educativo, efectuando, para tal, um levantamento de determinados erros que deverão ser, segundo toda a probabilidade, produzidos em certos módulos ou estádios da aprendizagem de uma língua segunda – o que significa, muito justamente, que há – ou não – progressão no segmento da aprendizagem em causa e que, correlativamente, a metodologia e as estratégias matizados para o efeito estão – ou não - a ser eficazmente implementadas. Em resumo, o erro, inserido nesta lógica pedagógica, surge, não como um elemento patológico, mas como aferição qualitativa ao serviço da avaliação lato sensu.
Quer isto significar que a relação do professor com o saber foi irremediavelmente alterada. Até ali, o professor detinha, de forma una e indivisível por assim dizer, o monopólio da sabedoria, ele era tido como o guardião do conhecimento, aquele que procura[va] a verdade; desde então, ele é perspectivado como um mero utilizador de métodos pedagógicos, já que o saber – uma das fontes tradicionais de poder de que ele dispunha a seu bel-prazer – se tornou num motivo de disputa concorrencial, ao alcance do comum dos mortais, através, por exemplo, da escola paralela e da difusão massiva e avassaladora da informação.
Em consequência disso, o papel do professor tornou-se cada vez mais complexo, ao ponto de ser, hoje, preferível falarmos de multiplicidade de papéis que lhe são comummente atribuídos e exigidos (daí que Debesse fale lapidarmente da concepção multifuncional do docente). Ele é, com efeito, planificador, avaliador, director de turma, presidente de reunião de conselho de turma e/ou disciplinar, acompanhante (como por exemplo em visitas de estudo que, nos moldes actuais, não passam de actividades de carácter sócio-recreativo e extracurricular), coordenador/planificador de projectos (entre outros, o Projecto Curricular, cuja concretização não foge inevitavelmente à letargia e à agonia), mediador de conflitos e de expectativas, vigilante, corrector, relator, copista (designadamente de materiais administrativos, dado que são os professores que abrem e encerram o ano lectivo – pelo que a Administração Pública se viu, de repente, valorada de uma mão-de-obra puramente gratuita…).
Ora, no meio de tantas tarefas – e receio não ter sido exaustivo –, que desqualifica o docente e que o despersonaliza até à exaustão, apetece perguntar: onde é que está a tarefa central do docente, que deve ser justamente a de resolver as questões didáctico-pedagógicas e a de gerir a complexa questão do saber?
Não se iludam os optimistas! Parece óbvio que, por detrás de todas estas transformações, que, no plano prático, se traduzem numa intensificação do trabalho e da função docentes (decentes?) encontramos um denominador comum: a preocupação com a eficácia dos métodos carreados, e, de forma correlata, com o sucesso escolar. É que, note-se, nos métodos ditos expositivos, o magister não tinha de se preocupar com o feedback, isto é, não tinha que ver com a retroalimentação da sua plateia: o modo era o da transmissão linear de conhecimentos e de matérias compartimentadas até aos limites da razoabilidade (filosofia curricular tributária, em larga medida, da visão cartesiana da matéria...), o que significa que o ensino magistral tinha um único sentido e, por conseguinte, o insucesso, esse, era imputado à proveniência social do aluno, ao meio socioeconómico da família ou a qualquer indicador taxonómico de recurso e não contemplava, em caso algum, o aluno na sua relação com o processo de aprendizagem.
Contudo, no mundo contemporâneo, o professor, esse, coloca-se preferencialmente no lado oposto (não obstante esta glorificação do aluno me parecer um non-sense), pois que o docente não pode abdicar da sua investidura, como sublinha Bourdieu e Passeron, ou, dito por outras palavras, o docente não pode deixar de exercer a autoridade legal que a escola lhe confere: ele, o docente, surge como directamente implicado em todo o processo. Todavia, o fiel da balança avaliativa encontra-se, doravante, do seu lado, até porque tem, hoje, consciência de que o insucesso é,sobretudo, de natureza relacional, isto é, encontra-se situado algures no ponto de intersecção de vários factores emergentes, que se prendem, no essencial, com as relações que o aluno estabelece com a Escola, com a sua história individual e com a seu próprio estádio desenvolvimental, ou seja, com as relações que vai pari passu cimentando na sua dimensão social e familiar (daí que se tenham criado as aulas de Apoio Acrescido – o que implica o reconhecimento da existência de classes desfavorecidas que necessitam de uma maior aculturação do que outras (cf. Benavente, Ana; Correia, Adelaide (1981) Obstáculos ao Sucesso na Escola Primária. Lisboa: Instituto de Estudos para o Desenvolvimento) e também na relação que ele estabelece com os instrumentos pedagógicos postos em prática, com a metodologia carreada para a cena didáctica, com as actividades sugeridas – em suma, o insucesso, sob este ângulo, vem colocar em causa a eficácia e a linha praxeológica do trabalho do professor.
Quem diz (in)sucesso, diz certamente avaliação. Ora, reside justamente aí uma das mais importantes – senão a mais poderosa – tarefas do professor. Com efeito, se ele detém, ainda, alguma forma de poder e de autoridade pedagógica (que mais não é do que aquilo que Philippe Bernoux define no seu livro La sociologie des organisations como sendo a margem de incerteza…), isso advém-lhe, justamente, da sua capacidade de avaliar, de (so)pesar, de medir, de classificar, de seleccionar – em suma, de sancionar. Aliás, a avaliação, nas suas múltiplas formas, constitui, em última análise, uma das maiores invenções dos tempos modernos. E não estou apenas a falar dos testes (académicos ou psicológicos). Estou a falar de uma outra forma de pressão e de controlo muito mais abrangente e, porventura, mais tirânica e subterrânea: a observação e a vigilância institucionalizadas, isto é, a colonização do indivíduo. Nesta óptica, o aluno – mas também o professor e, no fundo, todos nós, pois que as sociedades modernas são estruturas altamente policiadas, normativas, colonizadas – constitui uma entidade permanentemente exposta e observada, a exemplo do que refere, muito a propósito, Michel Foucault, para quem o aluno, mesmo nos seus gestos mais íntimos, está sob observação desde o momento em que entra na Escola (a começar pelo seu próprio pensamento, cujo subproduto é objecto de uma curiosa alienação pelo viés das múltiplas técnicas de testagem). Na realidade, a instituição apodera-se da sua resposta, arquiva-a e prevê mesmo uma sanção pecuniária, caso o autor manifeste intenção de a consultar. É aquilo que o autor designa por “o olho que tudo vê”, cujo fenómeno ultrapassa, parece-me, o simples pacto faustiano – ele penetra no próprio corpo, vigia-o, disciplina-o (Aliás, num outro quadro metodológico que não este, importaria perceber as razões que justificariam o colonialismo mais ou menos persucutório das sociedades de hoje, minuciosamente disciplinares – ao contrário das sociedades pré-modernas, que eram espectaculares –, mas, dada a escassez de espaço, resumamos a preceito: o facto prende-se com a necessidade de expurgar o elemento patológico, subversivo, anómalo…).
Até aqui, descrevemos o professor como figura objectiva, isto é, falamos dele numa óptica externa e instrumental. Tempo, agora, de o perspectivar como sujeito corporativo. Tempo, agora, de o descrever, não na sua individualidade mais ou menos excêntrica, nem na sua solidão criadora – "o tempo [de facto] é inimigo da liberdade" (op. cit.: 105) –, mas enquanto grupo que age e interage num espaço, num tempo e num contexto próprios, isto é, enquanto conjunto de indivíduos que sentem, que pensam, que falam – em suma, que existem positivamente. Quem são estes docentes? São pessoas, quer dizer, são seres contingentes, e, como tal, transportam consigo todo um cortejo de crenças e de valores, todo um amplexo de medos e de desejos (que são “a base da criatividade, da mudança, do empenhamento e do compromisso” (op. cit.: 14), toda uma concatenação passível de influências e de visões (cujo transporte para o domínio da sua profissionalidade docente amplifica, por assim dizer, a tensão voz/visão e, por inerência, a cacofonia da sua praxeologia efectiva – em resumo, toda uma multiplicidade de formas de cultura ou, em alternativa, de subculturas, na medida em que estas instauram justamente uma relação de hiponímica para com o todo cultural), sem que isso signifique qualquer sentimento de anomia.
Ora, todas estas (sub)culturas docentes, sob o ponto da vista dos comportamentos e das práticas proxémicas, são susceptíveis de fomentar modalidades de colaboração – e, de resto, versões de colegialidade artificial e de balcanização – tão diversas quanto os processos de diversificação interna analisados pela literatura posta em determinado momento à disposição. É que, na realidade, os professores não estão ao abrigo de uma cultura organizacional monolítica e inquestionável, mas, antes, encontram-se, por definição, submersos num contexto social em que a interacção grupal e interpessoal assume, cada vez mais, uma importância vital (quer no seu desenvolvimento profissional, quer no seu enriquecimento pessoal).
Deste modo, as subculturas ocupacionais são função da profundidade e minúcia da análise, o que significa que os factores de diferenciação interna na ocupação docente são, na sua essência, função da diferença categorial entre os docentes, não apenas entre si, mas também – e sobretudo! – entre os actores episodicamente dispostos num mesmo estabelecimento de ensino. Assim, e para o caso que nos diz directamente respeito (o nosso país…), citemos um pouco ao acaso, as clivagens político-ideológicas entre os seus membros, aliás extremamente gravosas para o reforço de uma consciência profissional que teima em (não) se afirmar, mas que curiosamente aspira ao reconhecimento corporativo (registe-se a existência, altamente significativa a este respeito, de um sindicato pró-ordem). Citemos ainda, em guisa de enumeração, a idade, o sexo, o nível de experiência no ensino, as práticas e concepções pedagógicas, as estratégias de carreira, as origens sociais – que mais ainda? Citemos, pois, os modos de relacionamento, a (de)formação profissional, as responsabilidades profissionais – encerremos aqui a lista, sob pena de não atingirmos, por falta de espaço, o essencial.
Se é tudo? Claro que não. Gostaria ainda de levantar algumas – breves – questões ligadas à organização social das áreas curriculares, sobretudo a divisão existente entre as disciplinas de carácter “académico”, por um lado, e as disciplinas de carácter mais prático ou “exploratório” (como é o caso da Educação Tecnológica…), por outro, o que configura na perfeição o preconceito social (em que a Escola, uma vez mais, surge apenas como interlocutora – e reguladora – de uma vontade social pouco clara...), que assenta na primazia dada ao desenvolvimento cognitivo, em detrimento do domínio motor lato sensu. Refiro-me, em concreto, a esta incongruência dos tempos pós-modernos, que consiste na dificuldade em reconhecer – a par do objecto estético (quase) sacralizado – um objecto técnico (quase odiado).
Ora, esta atitude, ratificada pelas estruturas dirigentes, é tanto mais inqualificável se tivermos em linha de conta que ela tem graves repercussões no redimensionamento das subculturas dos docentes, pois que cava uma linha divisória (mais uma!...) entre os professores nucleares e os professores marginais. Nestes termos, o discurso da colegialidade parece, na realidade, contraditório, a começar curiosamente pela retórica oficial...
Aliás, a própria cultura organizacional parece mais interessada em dividir do que em reunificar, pelo que esta “caixa de ovos”, segundo a designação de Dan Lortie, define na perfeição a concepção cubicular das nossas escolas. Com efeito, o departamentalismo traduz-se, na prática, por uma divisão dos professores em pequenos grupos – o que implica que o modelo sistémico estimula, em vez de anular, os interesses paroquiais, recria, em vez de pulverizar, o mito da incomunicabilidade docente, e, por fim, estratifica, incontestavelmente, a própria socialização dos docentes – em vez de a reestruturar.
Em suma, todas estas formas de colaboração, tornadas perversas pelo próprios modelos organizacionais ou pela erosão da interacção docente, facilita e promove, como se calcula, a balcanização do ensino.
2. CONCLUSÃO
"Viver na sociedade moderna significa viver no centro
um de caleidoscópio de papéis em constante mutação"
Berger, Peter. A Sociologia como forma de consciência: p. 36.
Ao longo desta (longa) análise crítica, tentei perceber os fenómenos que afectam, de uma forma ou de outra, o ensino e os docentes. Tentei dar a perceber, aqui e ali, que a mudança é um conceito extremamente complexo, inscrito em estruturas tão diversas quanto complementares e subsidiárias. Para levar a cabo a minha tarefa de crítico, segui, na primeira parte (cf. SÍNTESE), de forma estreita e sistemática, a obra objecto da análise, enquanto na segunda parte (COMENTÁRIO) me limitei a não perder de vista o pano de fundo do livro Os Professores em Tempo de Mudança. A exemplo do cibernético. A exemplo, sobretudo, da própria sociologia, disciplina-carrefour, cujo objecto é um construído (um construto).
De resto, quem quiser perceber a dinâmica destes processos transformacionais que passei em revista terá de recorrer, quer queira quer não, a uma teoria do contexto, isto é, a uma estratégia de adequação, capaz de descrever cientificamente os elementos constitutivos do problema, assim como terá de lançar mão de uma estratégia de avaliação capaz de prever o sentido e a orientação da problematização em causa, e, por fim, terá de engendrar, um pouco à maneira dos generativistas, uma estratégia de justificação suficientemente coerente e capaz de confirmar – ou infirmar – os resultados obtidos.
Antes de terminar este excurso, impõe-se quase de per si uma nota de carácter técnico: tendo o livro sido escrito, por um lado, para uma comunidade escolar sensivelmente diferente da nossa e tendo, por outro lado, em conta o background (a escola primária), vi-me, por conseguinte, na obrigação de encontrar uma solução de compromisso – e de continuidade – entre a minha experiência docente, o meu capital literário e o paratexto tributário da linguística.
Como nota final, julgo ser de alguma utilidade explicitar a minha opinião enquanto leitor atento. E, neste particular, parece-me que Os Professores em Tempo de Mudança deixa na sombra alguns aspectos centrais da profissionalidade docente. Na verdade, dado que o professor vive, de facto, mergulhado numa intensificação crescente de tarefas, a questão fundamental que fica (hélas!) sem resposta é a de saber até onde é que o professor consegue distender, alargar, descomprimir – em suma, até onde é que o docente consegue responder favoravelmente à multiplicidade de exigências, de trabalho e de papéis que é chamado a desempenhar. Claro que o tempo dele – o meu! – é, na sua essência, fenomenológico, variável, subjectivo, mas no meio desta multifuncionalidade docente são outros tantos papéis que ficam para trás...
A estrada parece ter começado, insinuava Georg Lukács. A viagem, essa, parece ter chegado ao seu epílogo. Caberá, doravante, ao professor decidir assumir-se como um herói polémico de uma cidade sem Deus ou como um figurante das sociedades fechadas sobre si próprias que vive (?) subjugado pelo poder demiúrgico.
Não fosse o aspecto verbal e esta Conclusão poderia muito bem servir de Introdução. Intercomunicabilidade de funções dos professores em tempo de mudança...
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Nesta óptica de largo espectro, a mudança torna-se sinónimo, ou melhor, um hiperónimo de dinâmicas interpessoais e intergrupais, o tempo é percebido como recurso, como percepção (observável) e como objecto de luta, o trabalho é sentido como emprego, ou seja, como um conjunto mais ou menos variável de tarefas e de relações humanas estruturadas de um modo muito particular e, por fim, a cultura traduz-se num conjunto mais ou menos aleatório de práticas e de subculturas que, a meu ver, coexistem de forma não muito pacífica num mesmo espaço, no caso vertente, num determinado estabelecimento de ensino.
Importa por conseguinte realçar, antes de avançarmos na nossa análise, que as teorias do campo empresarial não podem ser aplicadas de forma mecânica e imediata ao domínio específico do ensino. E isto por uma razão muito simples: é que uma escola não é propriamente uma empresa. Certo, ambos os modelos organizacionais partilham comportamentos muito semelhantes, mas, como noutras áreas sistémicas, a analogia deve ser sempre utilizada com redobradas precauções. Na verdade, a escola não é uma instituição com fins lucrativos, não obstante o diploma continuar a ser sancionado pelo mercado de trabalho, ainda que de forma mediata e diferida... Por outro lado, o processo de ensino/aprendizagem não se desenvolve num tempo linear, objectivado, externo – em suma, racionalizado (muito embora as tentativas de taylorização da escola não sejam tão raras quanto poderíamos supor). Com efeito, ao contrário da empresa, que se rege por critérios rígidos e inflexíveis de produção, o organograma escolar inscreve-se numa lógica fluida e caleidoscópica. Além disso, e mais importante do que o acaba de ser dito, o aluno não é um (sub)produto, pelo menos no sentido mercantil do termo (ainda que represente uma mais-valia, traduzida, na circunstância, pelo sucesso ou insucesso de uma certa ordem cultural…), mas, antes, uma realidade extremamente complexa, como veremos infra.
O livro levanta, pois, um conjunto de questões de suma importância para os professores e para o ensino, e, neste sentido, o problema de fundo, parece-me, é o de legitimar de forma lógica e racional, não apenas o discurso, mas também o contexto da mudança. Ora, nessa matéria não faltam as motivações e os argumentos, como foi cursivamente aflorado no intróito desta secção.
De facto, em tempo de crise de identidade, numa era em que o que é hoje cientificamente verdade, amanhã será certamente questionado, não é de admirar que a Escola, enquanto conjunto difuso de representações sociais, esteja sob vigilância apertada: ela constitui uma zona frontal em toda a linha, dado que é aí justamente que todos nós depositamos a nossa esperança – e todo o nosso desespero. Não admira, pois, que a Escola seja o receptáculo de sentimentos tão diversos quanto contraditórios. Aliás, curioso e sintomático desta tensão, quer dizer, desta correlação de forças antagónicas e ambivalentes na sua génese, é o facto de todos apontarem o dedo à escola, de todos falarem do estado em que ela se encontra, confirmando absolutamente o desabafo de A. H. Halsey (para quem a escola seria, afinal de contas, “o cesto dos papéis da sociedade.” (op, cit.: 5), sem que se vislumbre uma solução de compromisso – e de continuidade. Ou, por que não ousar dizê-lo, de ruptura…
No prolongamento deste pensamento, constatamos que a prática política não é insensível à matéria. Longe disso. Percebamos o que está em jogo – e a sociologia das organizações está aí para nos ajudar na tarefa: é que uma das formas ancestrais de afirmação do poder é que ele possua um cunho pessoal, uma espécie de assinatura de autor. Assim, do ponto de vista organizacional, a mudança surge como uma forma de legitimação político-partidária, mesmo nos regimes de cariz (pseudo)democrático.
Assim é. A Educação, ponto de convergência e de intersecção de vários vectores socioeconómicos é, não raras vezes, instrumentalizada e assume-se, de resto, tal como Althusser muito bem demonstrou, como um importante aparelho ideológico do Estado. Quem é que não reconhece, com efeito, que, por detrás da unificação linguística (em detrimento dos dialectos), se encontra o medo mítico da perda da identidade nacional? Quem é que dúvida que, por detrás da escolarização obrigatória, se esconde(u), entre outros motivos, a percepção dos impostos por parte do Estado? Quem é que está pronto a negar que, por detrás do alargamento da escolaridade mínima obrigatória, num determinado ponto da História (como ocorreu, por exemplo, com a Reforma de 1973, que aumentou para 8 anos a escolaridade mínima obrigatória…), se encontra a diminuição das expectativas de emprego (ou melhor, de empregabilidade, para utilizar uma linguagem pós-moderna) e de ascensão social ou, pelo menos, de diminuição da sua força e prestígio corporativos (que a criação das novas Faculdades de Medicina consubstancia)? Quem é que não reconhece que, no fundo, as reformas de hoje têm mais a ver com as variações morfológicas do corpo docente e do seu redimensionamento ou da sua reciclagem curricular do que com uma vontade genuína de mudança de paradigma, que deveria traduzir, na superfície da napa social, uma expressão supostamente fiel das necessidades reais e profundas sentidas por um determinado estado de evolução civilizacional?
Parece não haver grandes dúvidas de que as políticas educativas andam, muitas vezes, a reboque do poder temporal e a História infelizmente fervilha de exemplos de toda a ordem (a mentalidade colonialista do Estado Novo, por exemplo, começava na escola com uso do uniforme – a famigerada bata branca…). Porém, desenganem-se os políticos, pois que tal facto não legitima, por si só, a mudança. Na verdade, para haver mudança, torna-se necessário que exista fenomenologicamente uma propensão interior, é preciso que se verifique um desejo mais ou menos latente de mudar algo – e esse desejo, ontem como hoje, é o resultado, por certo, de um rol de necessidades que, na prática, se traduzem por um certo mal-estar mais ou menos crescente.
Ora, na base do mal-estar encontramos sempre uma estrutura paradoxal. É uma espécie de conflito mais ou menos implícito entre o pensamento e a razão, cuja síndroma é apanágio das sociedades nas quais vivemos, agimos e falamos. Com efeito, o ser humano percebe vagamente os benefícios, por exemplo, da flexibilização dos processos de trabalho, mas está imbuído de teorias burocráticas e de estereótipos próprios de rinoceronte (tal como Ionesco tão bem ilustrou na sua obra epónima…). Ele aplaude aprioristicamente a globalização, mas não compreende o seu efeito de ricochete. Ele insurge-se convictamente contra as certezas absolutas que o fixam no tempo e no espaço, mas anseia por elas. Ele entende que os novos modelos organizacionais, caleidoscópicos, dinâmicos, flexíveis, são mais ajustados à sua natureza pós-moderna, mas prefere-lhes o estatismo (cimentado, por exemplo, nas trajectórias de carreira comodamente inscritas numa lógica de benefícios não-motivados) e a cristalização do edifício moderno (de que as célebres e obsoletas diuturnidades da função pública – e não só – constituem um exemplo paradigmático). Assim é, de facto. Ele força a consciência para lá dos seus próprios limites, mas teme perder a sua consistência. Ele controla a realidade digitalizada, mas não tem acção sobre o concreto. Em suma, o ser humano percebe a discrepância significativa entre o velho mundo em ruínas (a modernidade) e o novo quadro de referência (a pós-modernidade), mas as suas roupagens estão ainda envoltas em representações claramente insuficientes, pelo que o processo de mudança esbarra invariavelmente com o reconhecimento de uma escola sentida como anacrónica…
Falámos até aqui de educação, enquanto modelo sistémico. Impõe-se agora que foquemos, ainda que de forma sucinta, uma outra questão, igualmente fulcral, na minha opinião, e que consiste na compreensão da categoria “professor”. Quem é, ao certo? Será ele um intérprete da arte de ensinar, um detentor de um dom mágico e inato que já vinha inscrito na sua narrativa individual? Ou será ele uma espécie de missionário que terá, porventura, respondido a uma voz mítica e sagrada, e, como tal, mais não fez do que dar expressão à sua vocação inata, a exemplo do demiurgo? Ou será ele, antes, um técnico, quer dizer, um aprendiz que, graças à sua ductilidade, foi assimilando os segredos da sua profissão, passando por várias etapas rumo à eficácia, à eficiência, à proficiência - ou seja, trilhando o percurso específico da tecnicidade requerida que, nos dias que correm, se designa por excelência?
A questão não pode ser tratada de ânimo leve. É que, enquanto um mecânico, por exemplo, passa por estádios de desenvolvimento profissional pragmaticamente definidos (razão pela qual a sua competência é objectivável, pelo menos em termos de prossecução ou não de um estádio final - a desmontagem/montagem integrais de um motor, o que fará dele, de resto, um bom ou mau estruturalista), já o docente, esse, nunca chegará provavelmente a obter essa recompensa, pois que a natureza do seu trabalho permanece em aberto ad infinitum. Na verdade, perante este estado de coisas angustiante, urge definir profissionalmente o conceito.
É que, em boa verdade, o professor constitui uma entidade demasiado complexa e multifacetada. Ah sim! Longe vão os tempos em que o ensino, em geral, e o professor, em particular, estavam envoltos numa auréola mais ou menos sacrossanta, pelo que, entre o Mestre Régio (ou Mestre de ensinar ou Ensina-meninos) e o Professor da era das novas pedagogias pouco ou nada há em comum. Perceba-se o escopo da asserção: o docente ficou sem pedestal (magnificamente simbolizado pelo traço folclórico do estrado, reconhecimento físico do seu poder magistral), quer dizer, ele, o docente, aproximou-se do aluno, que, por seu turno, viu reconhecida a sua complexidade, deixando de ser percebido apenas como entidade abstracta (como se pode aliás confirmar pelas estruturas dialógicas coloquiais e (pseudo)familiares tal como Tu, o nome de baptismo; etc), para passar a ser concebido como uma entidade biopsicossocial, ou seja, como um indivíduo dotado de um organismo psicossomático e inscrito num determinado meio social.
Paralelamente, os métodos activos, fundamentados no princípio do learning by doing (cf: as teorias propostas por Claparède, Decroly, Freinet, Dewey, Montessori – e a lista fica em aberto…), vieram demonstrar, entre outras coisas, a importância do ensino e da aprendizagem pela descoberta, o que implica reconhecer a utilidade científica da pedagogia do erro – que, desse modo, deixou de ser anomalia para se tornar analogia. Neste sentido, preconizava Montessori, devemos dar à criança oportunidades para que ela suje, quebre, deteriore os materiais “didácticos” (como por exemplo, uma mobília branca, um quarto pintado fresco…), em suma, devemos facultar ao aprendente as condições materiais óptimas para que ela aprenda, ou melhor, para que ela apreenda a descoberta... pelo desvio. Do mesmo modo, podemos avaliar o grau de eficácia de um determinado processo educativo, efectuando, para tal, um levantamento de determinados erros que deverão ser, segundo toda a probabilidade, produzidos em certos módulos ou estádios da aprendizagem de uma língua segunda – o que significa, muito justamente, que há – ou não – progressão no segmento da aprendizagem em causa e que, correlativamente, a metodologia e as estratégias matizados para o efeito estão – ou não - a ser eficazmente implementadas. Em resumo, o erro, inserido nesta lógica pedagógica, surge, não como um elemento patológico, mas como aferição qualitativa ao serviço da avaliação lato sensu.
Quer isto significar que a relação do professor com o saber foi irremediavelmente alterada. Até ali, o professor detinha, de forma una e indivisível por assim dizer, o monopólio da sabedoria, ele era tido como o guardião do conhecimento, aquele que procura[va] a verdade; desde então, ele é perspectivado como um mero utilizador de métodos pedagógicos, já que o saber – uma das fontes tradicionais de poder de que ele dispunha a seu bel-prazer – se tornou num motivo de disputa concorrencial, ao alcance do comum dos mortais, através, por exemplo, da escola paralela e da difusão massiva e avassaladora da informação.
Em consequência disso, o papel do professor tornou-se cada vez mais complexo, ao ponto de ser, hoje, preferível falarmos de multiplicidade de papéis que lhe são comummente atribuídos e exigidos (daí que Debesse fale lapidarmente da concepção multifuncional do docente). Ele é, com efeito, planificador, avaliador, director de turma, presidente de reunião de conselho de turma e/ou disciplinar, acompanhante (como por exemplo em visitas de estudo que, nos moldes actuais, não passam de actividades de carácter sócio-recreativo e extracurricular), coordenador/planificador de projectos (entre outros, o Projecto Curricular, cuja concretização não foge inevitavelmente à letargia e à agonia), mediador de conflitos e de expectativas, vigilante, corrector, relator, copista (designadamente de materiais administrativos, dado que são os professores que abrem e encerram o ano lectivo – pelo que a Administração Pública se viu, de repente, valorada de uma mão-de-obra puramente gratuita…).
Ora, no meio de tantas tarefas – e receio não ter sido exaustivo –, que desqualifica o docente e que o despersonaliza até à exaustão, apetece perguntar: onde é que está a tarefa central do docente, que deve ser justamente a de resolver as questões didáctico-pedagógicas e a de gerir a complexa questão do saber?
Não se iludam os optimistas! Parece óbvio que, por detrás de todas estas transformações, que, no plano prático, se traduzem numa intensificação do trabalho e da função docentes (decentes?) encontramos um denominador comum: a preocupação com a eficácia dos métodos carreados, e, de forma correlata, com o sucesso escolar. É que, note-se, nos métodos ditos expositivos, o magister não tinha de se preocupar com o feedback, isto é, não tinha que ver com a retroalimentação da sua plateia: o modo era o da transmissão linear de conhecimentos e de matérias compartimentadas até aos limites da razoabilidade (filosofia curricular tributária, em larga medida, da visão cartesiana da matéria...), o que significa que o ensino magistral tinha um único sentido e, por conseguinte, o insucesso, esse, era imputado à proveniência social do aluno, ao meio socioeconómico da família ou a qualquer indicador taxonómico de recurso e não contemplava, em caso algum, o aluno na sua relação com o processo de aprendizagem.
Contudo, no mundo contemporâneo, o professor, esse, coloca-se preferencialmente no lado oposto (não obstante esta glorificação do aluno me parecer um non-sense), pois que o docente não pode abdicar da sua investidura, como sublinha Bourdieu e Passeron, ou, dito por outras palavras, o docente não pode deixar de exercer a autoridade legal que a escola lhe confere: ele, o docente, surge como directamente implicado em todo o processo. Todavia, o fiel da balança avaliativa encontra-se, doravante, do seu lado, até porque tem, hoje, consciência de que o insucesso é,sobretudo, de natureza relacional, isto é, encontra-se situado algures no ponto de intersecção de vários factores emergentes, que se prendem, no essencial, com as relações que o aluno estabelece com a Escola, com a sua história individual e com a seu próprio estádio desenvolvimental, ou seja, com as relações que vai pari passu cimentando na sua dimensão social e familiar (daí que se tenham criado as aulas de Apoio Acrescido – o que implica o reconhecimento da existência de classes desfavorecidas que necessitam de uma maior aculturação do que outras (cf. Benavente, Ana; Correia, Adelaide (1981) Obstáculos ao Sucesso na Escola Primária. Lisboa: Instituto de Estudos para o Desenvolvimento) e também na relação que ele estabelece com os instrumentos pedagógicos postos em prática, com a metodologia carreada para a cena didáctica, com as actividades sugeridas – em suma, o insucesso, sob este ângulo, vem colocar em causa a eficácia e a linha praxeológica do trabalho do professor.
Quem diz (in)sucesso, diz certamente avaliação. Ora, reside justamente aí uma das mais importantes – senão a mais poderosa – tarefas do professor. Com efeito, se ele detém, ainda, alguma forma de poder e de autoridade pedagógica (que mais não é do que aquilo que Philippe Bernoux define no seu livro La sociologie des organisations como sendo a margem de incerteza…), isso advém-lhe, justamente, da sua capacidade de avaliar, de (so)pesar, de medir, de classificar, de seleccionar – em suma, de sancionar. Aliás, a avaliação, nas suas múltiplas formas, constitui, em última análise, uma das maiores invenções dos tempos modernos. E não estou apenas a falar dos testes (académicos ou psicológicos). Estou a falar de uma outra forma de pressão e de controlo muito mais abrangente e, porventura, mais tirânica e subterrânea: a observação e a vigilância institucionalizadas, isto é, a colonização do indivíduo. Nesta óptica, o aluno – mas também o professor e, no fundo, todos nós, pois que as sociedades modernas são estruturas altamente policiadas, normativas, colonizadas – constitui uma entidade permanentemente exposta e observada, a exemplo do que refere, muito a propósito, Michel Foucault, para quem o aluno, mesmo nos seus gestos mais íntimos, está sob observação desde o momento em que entra na Escola (a começar pelo seu próprio pensamento, cujo subproduto é objecto de uma curiosa alienação pelo viés das múltiplas técnicas de testagem). Na realidade, a instituição apodera-se da sua resposta, arquiva-a e prevê mesmo uma sanção pecuniária, caso o autor manifeste intenção de a consultar. É aquilo que o autor designa por “o olho que tudo vê”, cujo fenómeno ultrapassa, parece-me, o simples pacto faustiano – ele penetra no próprio corpo, vigia-o, disciplina-o (Aliás, num outro quadro metodológico que não este, importaria perceber as razões que justificariam o colonialismo mais ou menos persucutório das sociedades de hoje, minuciosamente disciplinares – ao contrário das sociedades pré-modernas, que eram espectaculares –, mas, dada a escassez de espaço, resumamos a preceito: o facto prende-se com a necessidade de expurgar o elemento patológico, subversivo, anómalo…).
Até aqui, descrevemos o professor como figura objectiva, isto é, falamos dele numa óptica externa e instrumental. Tempo, agora, de o perspectivar como sujeito corporativo. Tempo, agora, de o descrever, não na sua individualidade mais ou menos excêntrica, nem na sua solidão criadora – "o tempo [de facto] é inimigo da liberdade" (op. cit.: 105) –, mas enquanto grupo que age e interage num espaço, num tempo e num contexto próprios, isto é, enquanto conjunto de indivíduos que sentem, que pensam, que falam – em suma, que existem positivamente. Quem são estes docentes? São pessoas, quer dizer, são seres contingentes, e, como tal, transportam consigo todo um cortejo de crenças e de valores, todo um amplexo de medos e de desejos (que são “a base da criatividade, da mudança, do empenhamento e do compromisso” (op. cit.: 14), toda uma concatenação passível de influências e de visões (cujo transporte para o domínio da sua profissionalidade docente amplifica, por assim dizer, a tensão voz/visão e, por inerência, a cacofonia da sua praxeologia efectiva – em resumo, toda uma multiplicidade de formas de cultura ou, em alternativa, de subculturas, na medida em que estas instauram justamente uma relação de hiponímica para com o todo cultural), sem que isso signifique qualquer sentimento de anomia.
Ora, todas estas (sub)culturas docentes, sob o ponto da vista dos comportamentos e das práticas proxémicas, são susceptíveis de fomentar modalidades de colaboração – e, de resto, versões de colegialidade artificial e de balcanização – tão diversas quanto os processos de diversificação interna analisados pela literatura posta em determinado momento à disposição. É que, na realidade, os professores não estão ao abrigo de uma cultura organizacional monolítica e inquestionável, mas, antes, encontram-se, por definição, submersos num contexto social em que a interacção grupal e interpessoal assume, cada vez mais, uma importância vital (quer no seu desenvolvimento profissional, quer no seu enriquecimento pessoal).
Deste modo, as subculturas ocupacionais são função da profundidade e minúcia da análise, o que significa que os factores de diferenciação interna na ocupação docente são, na sua essência, função da diferença categorial entre os docentes, não apenas entre si, mas também – e sobretudo! – entre os actores episodicamente dispostos num mesmo estabelecimento de ensino. Assim, e para o caso que nos diz directamente respeito (o nosso país…), citemos um pouco ao acaso, as clivagens político-ideológicas entre os seus membros, aliás extremamente gravosas para o reforço de uma consciência profissional que teima em (não) se afirmar, mas que curiosamente aspira ao reconhecimento corporativo (registe-se a existência, altamente significativa a este respeito, de um sindicato pró-ordem). Citemos ainda, em guisa de enumeração, a idade, o sexo, o nível de experiência no ensino, as práticas e concepções pedagógicas, as estratégias de carreira, as origens sociais – que mais ainda? Citemos, pois, os modos de relacionamento, a (de)formação profissional, as responsabilidades profissionais – encerremos aqui a lista, sob pena de não atingirmos, por falta de espaço, o essencial.
Se é tudo? Claro que não. Gostaria ainda de levantar algumas – breves – questões ligadas à organização social das áreas curriculares, sobretudo a divisão existente entre as disciplinas de carácter “académico”, por um lado, e as disciplinas de carácter mais prático ou “exploratório” (como é o caso da Educação Tecnológica…), por outro, o que configura na perfeição o preconceito social (em que a Escola, uma vez mais, surge apenas como interlocutora – e reguladora – de uma vontade social pouco clara...), que assenta na primazia dada ao desenvolvimento cognitivo, em detrimento do domínio motor lato sensu. Refiro-me, em concreto, a esta incongruência dos tempos pós-modernos, que consiste na dificuldade em reconhecer – a par do objecto estético (quase) sacralizado – um objecto técnico (quase odiado).
Ora, esta atitude, ratificada pelas estruturas dirigentes, é tanto mais inqualificável se tivermos em linha de conta que ela tem graves repercussões no redimensionamento das subculturas dos docentes, pois que cava uma linha divisória (mais uma!...) entre os professores nucleares e os professores marginais. Nestes termos, o discurso da colegialidade parece, na realidade, contraditório, a começar curiosamente pela retórica oficial...
Aliás, a própria cultura organizacional parece mais interessada em dividir do que em reunificar, pelo que esta “caixa de ovos”, segundo a designação de Dan Lortie, define na perfeição a concepção cubicular das nossas escolas. Com efeito, o departamentalismo traduz-se, na prática, por uma divisão dos professores em pequenos grupos – o que implica que o modelo sistémico estimula, em vez de anular, os interesses paroquiais, recria, em vez de pulverizar, o mito da incomunicabilidade docente, e, por fim, estratifica, incontestavelmente, a própria socialização dos docentes – em vez de a reestruturar.
Em suma, todas estas formas de colaboração, tornadas perversas pelo próprios modelos organizacionais ou pela erosão da interacção docente, facilita e promove, como se calcula, a balcanização do ensino.
2. CONCLUSÃO
"Viver na sociedade moderna significa viver no centro
um de caleidoscópio de papéis em constante mutação"
Berger, Peter. A Sociologia como forma de consciência: p. 36.
Ao longo desta (longa) análise crítica, tentei perceber os fenómenos que afectam, de uma forma ou de outra, o ensino e os docentes. Tentei dar a perceber, aqui e ali, que a mudança é um conceito extremamente complexo, inscrito em estruturas tão diversas quanto complementares e subsidiárias. Para levar a cabo a minha tarefa de crítico, segui, na primeira parte (cf. SÍNTESE), de forma estreita e sistemática, a obra objecto da análise, enquanto na segunda parte (COMENTÁRIO) me limitei a não perder de vista o pano de fundo do livro Os Professores em Tempo de Mudança. A exemplo do cibernético. A exemplo, sobretudo, da própria sociologia, disciplina-carrefour, cujo objecto é um construído (um construto).
De resto, quem quiser perceber a dinâmica destes processos transformacionais que passei em revista terá de recorrer, quer queira quer não, a uma teoria do contexto, isto é, a uma estratégia de adequação, capaz de descrever cientificamente os elementos constitutivos do problema, assim como terá de lançar mão de uma estratégia de avaliação capaz de prever o sentido e a orientação da problematização em causa, e, por fim, terá de engendrar, um pouco à maneira dos generativistas, uma estratégia de justificação suficientemente coerente e capaz de confirmar – ou infirmar – os resultados obtidos.
Antes de terminar este excurso, impõe-se quase de per si uma nota de carácter técnico: tendo o livro sido escrito, por um lado, para uma comunidade escolar sensivelmente diferente da nossa e tendo, por outro lado, em conta o background (a escola primária), vi-me, por conseguinte, na obrigação de encontrar uma solução de compromisso – e de continuidade – entre a minha experiência docente, o meu capital literário e o paratexto tributário da linguística.
Como nota final, julgo ser de alguma utilidade explicitar a minha opinião enquanto leitor atento. E, neste particular, parece-me que Os Professores em Tempo de Mudança deixa na sombra alguns aspectos centrais da profissionalidade docente. Na verdade, dado que o professor vive, de facto, mergulhado numa intensificação crescente de tarefas, a questão fundamental que fica (hélas!) sem resposta é a de saber até onde é que o professor consegue distender, alargar, descomprimir – em suma, até onde é que o docente consegue responder favoravelmente à multiplicidade de exigências, de trabalho e de papéis que é chamado a desempenhar. Claro que o tempo dele – o meu! – é, na sua essência, fenomenológico, variável, subjectivo, mas no meio desta multifuncionalidade docente são outros tantos papéis que ficam para trás...
A estrada parece ter começado, insinuava Georg Lukács. A viagem, essa, parece ter chegado ao seu epílogo. Caberá, doravante, ao professor decidir assumir-se como um herói polémico de uma cidade sem Deus ou como um figurante das sociedades fechadas sobre si próprias que vive (?) subjugado pelo poder demiúrgico.
Não fosse o aspecto verbal e esta Conclusão poderia muito bem servir de Introdução. Intercomunicabilidade de funções dos professores em tempo de mudança...
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