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2009/07/12
AS PEQUENAS MEMÓRIAS
Nestas cento e quarenta e nove páginas da Editorial Caminho, José Saramago leva a cabo um relato da sua infância e da sua (primeira) juventude, cujo resultado constitui um emaranhado de pequenas histórias mais ou menos iguais às de um qualquer menino. Com mais ou menos sorte. Com mais ou menos sofrimento à mistura. Mas com os olhos de quem ainda não repara, porque vê ainda com um olhar de criança... Com efeito, As Pequenas Memórias mais não são do que a execução de um antigo projecto de dimensões autobiográficas – mas sem a pretensão de uma continuidade ao género, pois que, tal Alexandre O’Neill diria, a vidinha não é para ser contada, quer dizer, há coisas – aquilo que nós somos – que são inomináveis... Não obstante o paradoxo, o livro reúne um conjunto mais ou menos arbitrário de histórias de família, abarcando um período de onze anos (que vai dos quatro aos quinze). Assim, e ao longo deste segmento cronológico, surgem, misturados, episódios divertidos e pungentes, incidentes pueris e aparentemente insignificantes, acontecimentos prosaicos e triviais, em que o narrador - e autor -, nascido em 1922, relembra a sua aldeia natal (Azinhaga do Ribatejo), os seus estudos na Escola Industrial de Lisboa (de onde sairá serralheiro mecânico), o convívio com o avô, um camponês analfabeto, mas sábio, com quem, de resto, o adolescente aprendera a cuidar dos porcos e a interpretar os segredos insondáveis da Via Láctea.
Além disso, o relato autobiográfico dá ainda conta da sua brusca mudança de ares (de Azinhaga para a capital) para acompanhar o pai (que vai trabalhar para Lisboa como guarda da segurança pública), descreve, por vezes, com uma minúcia algo desmedida, a forma como passa a viver em Lisboa (em quartos alugados nos bairros populares, sempre nos últimos andares, por serem mais baratos…) e, mais do que isso, dá a conhecer a sua bem modesta evolução psicológica do momento: o menino tímido transformar-se num adolescente contemplativo, quiçá melancólico, que encontra na escola o seu porto de abrigo: na realidade, o jovem revela-se um excelente aluno, metódico, aplicado, mas cedo se depara com obstáculos inultrapassáveis, a saber, as dificuldades económicas que, na altura, apoquentam a família. Destarte, e em razão dos parcos recursos desta família da província, o adolescente vê-se compelido a interromper prematuramente os estudos…. Face ao exposto, poder-se-á afirmar que As Pequenas Memórias desvendam e explicam o percurso singular do escritor: com efeito, o rapaz que se viu na contingência de abandonar os estudo reflectir-se-á no autodidáctica, a natureza tímida e ascética do adolescente fará eco no temperamento reservado que caracterizará o adulto, a linguagem vernácula do avô encontrar-se-á disseminada na sua vasta obra, em suma, as peripécias vividas pelo menino darão origem a temáticas, ora extraordinárias, ora escatológicas, mas todas elas assentes, sem dúvida, nas vivências impressivas de outrora e associadas à força telúrica da aldeia ribatejana. Acrescente-se, todavia e em abono da verdade, que As Pequenas Memórias é um a obra naïveavant la lettre, pois que não é passível, por exemplo, de uma leitura subliminar (como as narrativas autobiográficas de André Gide ou de Marcel Proust), nem contém uma mensagem mais ou menos intervencionista (como O Ensaio Sobre a Lucidez), nem tão-pouco é possível daí extrair uma eventual doutrina filosófica, ainda que apocalíptica (como n’As Intermitências da Morte). Significa isto que o projecto autobiográfico saramaguiano se revela, a meu ver, um tanto ou quanto inconsequente e algo paradoxal, pois se, por um lado, diverge do conjunto arquitectural da sua obra (por não se vislumbrar uma solução de continuidade teleológica…), por outro, percebe-se mal assumir o pressuposto ideológico de que a vida não é para ser contada – aliás, dentro de nós uma coisa que não tem nome – e, simultaneamente, sentir esta irresistível vontade de a nomear – ainda que de forma fragmentária e meramente pontual…
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