Certo. Ele percebia, de forma um tanto ou quanto vaga e confusa, a silhueta de um homem alto e magro, uma figura exageradamente esguia e arguta, a brandir algo que se assemelhava a um maço de notas. Afigurava-se-lhe ver, em redor, uma pequena multidão de gente, um punhado de pessoas que se agitavam. Que se disputavam. Que se emaranhavam. Que se entreolhavam. Que se regozijavam. Que se excediam. Quem eram? De que se tratava? E o que é que, afinal, todos aqueles vultos estavam ali a fazer, especados, atónitos, inexpressivos?
Impossível definir-lhe os contornos. Impossível delimitar-lhe os traços. Mais difícil ser-lhe-ia precisar, com toda a verosimilhança, o espaço envolvente.
Não. Ele não sabia, de facto, se tudo aquilo pertencia a uma espécie de sonho, ou seja, se tudo aquilo fazia parte, afinal de contas, de um enorme pesadelo ou se tinha a ver, de alguma forma, com uma realidade ainda longínqua e, por conseguinte, sem qualquer fundo de memória.
Pese embora esta dúvida funcional, Filipe da Rosa, do alto dos seus quarenta e poucos anos, levantou-se. Com alguma parcimónia. Com uma certa ansiedade também. E, já de pé, mirou-se, demorada e fixamente, no espelho baço do guarda-roupa. Como se sentia ele, ao certo? Ora, um ser vil, abjecto, horrendo. Uma criatura incompreensivelmente estranha e quase patética. Sentia-se, no fundo, como já há muito não se lembrava.
O homem passou em revista, durante largos momentos, alguns pontos difíceis do seu doloroso passado. Viajou, no tempo, até uma tarde de Inverno, situada na década de sessenta. E via-se, ainda pequenino, na companhia da mãe. Seria ele, Filipe da Rosa em carne e osso? Não havia dúvidas: o mesmo olhar ingénuo. O mesmo esgar alarve. O mesmo tique nervoso. Oh sim! Como ele reconhecia, mais de quarenta anos volvidos, o mesmo ar matreiro, o mesmo sorriso dúbio, o mesmo olhar periclitante. Claro que o cabelo, esse, já não abundava, mas poder-se-ia afirmar, com toda a propriedade, que a sua ondulação continuava, por assim dizer, como dantes – ou quase. É evidente que o rosto, outrora alongado e vigoroso, lhe parecia bem mais descarnado e bem mais sulcado, mas as características intrínsecas e estruturantes da sua fisionomia, essas, não haviam desaparecido por completo. Longe disso. Permaneciam, antes, como que intactas. Como que imutáveis. Como que eternas.
No seu regresso ao presente, o homem, coitado, não percebia decididamente todo aquele mistério que o envolvia e que o subjugava. Recordava-se, com alguma nitidez, da noite anterior, da deslocação a uma espécie de festa local, organizada por um grupo extremista. Lembrava-se daquela silhueta feminina que se dizia anticlerical, anti-semita e anti-imperialista. Tinha ainda no seu ouvido a salva de palmas, a estrondosa salva de palmas, que terá encerrado o discurso oficial. Mas onde é que terá estado, ao certo? E em que circunstâncias terá ele participado nessa suposta cerimónia? E com que estatuto, com que qualidade, terá o homem feito parte integrante dessa alegada reunião de trabalho?
Filipe da Rosa não sabia. Por muito que pensasse, não podia afirmar, com toda a certeza e convicção, se tudo aquilo não passava, de facto, de um daqueles sonhos maus, de uma daquelas visões nocturnas em que acordava todo banhado em suor, ou se tinha, de algum modo, a ver com um futuro mais ou menos próximo. Não. Ele não era capaz de atribuir a todas aquelas imagens um significado real, um sentido global minimamente coerente e verosímil e, por conseguinte, passível de ser conectado, de uma forma ou de outra, com o seu campo de experiências. Faltava-lhe, dir-se-ia, o manual de instruções para poder descodificar a solução do puzzle.
E era justamente isso que o preocupava. Era esta dúvida, funcional, estruturante e assaz profunda, que lhe cavava a alma. Era, na verdade, esta incerteza, mais ou menos basilar, que lhe atiçava a imaginação. Que lhe irritava os sentidos. Que lhe fustigava o sangue. Nas vísceras. Nas veias. Nas artérias. Por todo o lado.
Deve ter sido mais uma daquelas descidas ao inferno, pensou o homem. Com efeito, toda aquele emaranhado de ideias, de ordens, de viagens, toda aquela combinação de aeroportos, de correspondências aéreas, de códigos de reserva, tudo isso, devia ter forçosamente a ver com uma lógica desconhecida e, justamente porque se desencadeava a um nível muito profundo da sua estrutura, não conseguia, na manhã seguinte, recordar-se de quase nada. Mecanismo de protecção da sua própria integridade? Sistema de defesa da sua própria individualidade? Sem dúvida, uma qualquer barreira subliminar para evitar a infracção. Sem dúvida, para não violar, certamente, uma espécie de interdito, de proibido, de rito das profundezas. Para justificar, talvez, as suas próprias convicções.
Mas que convicções? Ora, isso é obra de teoréticos e não de pragmáticos. E depois, ele não era pago para pensar. Ele não era pago para observar romanticamente as árvores e as suas frondosas ramificações. Com efeito, uma árvore, para ele, nada tinha de André Malraux. Quer dizer, uma árvore não tinha qualquer valor acrescentado, quer dizer, não conotava, contrariamente àquilo que afirmava o autor da Condition humaine. Não. Uma árvore era apenas uma árvore e nada mais do que uma árvore e, como tal, não era – não deveria ser – objecto de extrapolação poética, de especulação filosófica, de abuso literário. Aliás, a reflexão não era o seu forte. Decididamente. O pensamento, enquanto método de análise, não o seduzia. Ele era, por assim dizer, um homem de acção e, nesse sentido, a reflexão, o pensamento analítico, a dedução argumentativa não cabiam na sua forma de ser. Dir-se-ia que o homem havia sido vencido por uma espécie de preguiça intelectual, por um sentimento de incúria, cujas origens se terão perdido nas trevas da sua memória e, em certo sentido, tinha abdicado do hábito de cogitar. Em suma, o homem era um operacional, quer dizer, um profissional que obedecia mecanicamente às ordens emanadas pela cadeia de comando, alguém que sentia apenas a obrigação de executar um qualquer plano de acção e, nessa qualidade, não tinha – nem devia – discorrer sobre factos metafísicos, sobre matérias pouco ou nada tangíveis...
Absorto, confuso e como que para iludir a sua própria razão, o homem fixou-se, por breves momentos, no grande espelho, que, lá do fundo, reflectia todo o seu leito desfeito e abandonado. Meu Deus! Como havia perdido peso! Como estava transformado! Como estava magro! Lá do alto do seu arcaboiço de um metro e noventa, teve, de súbito, a sensação estranha e amarga que se encontrava mais descarnado ainda. Mais lívido. Mais lânguido. Mais cadavérico. Na verdade, sentia-se velho, velho e acabado, apesar dos seus 42 anos. E, no meio de toda esta angústia, no meio de todo este turbilhão mais ou menos impressionista, identificou mesmo, aqui e ali, algumas cãs que teimavam em variegar os seus cabelos ainda fartos. Sinais óbvios do tempo que passou. Do tempo que ora passa. Do porvir que, inexoravelmente, marcará a negro a vertigem da esperança, tal como a ave que, em queda livre, em ziguezague, risca a preto o azul do horizonte.
Mas quem era aquela mulher que, na véspera, o havia estranhamente dirigido? Quem era aquela figura feminina que o havia veemente aconselhado e convencido? Quem era aquele vulto amazónico que, na véspera, o havia seduzido, atazanado, enfeitiçado? O homem não guardava qualquer traço de memória, não guardava qualquer imagem conexa do sucedido. Assim era. Havia como que uma enorme lacuna na disposição cronológica dos factos. Havia como que uma falha sistémica no seu diário de bordo. Havia, na realidade, um espaço temporal, cujo alvará de habitabilidade não fora porventura resgatado.
Sim. Ele recordava-se, por exemplo, de ter descido a uma cave. Ele lembrava-se, com uma nitidez algo surpreendente, de ter descido por uma escada íngreme, sinuosa, interminável. Ele recordava-se de ter ouvido, alto e bom som, o nome da sua próxima missão. Nome de código: ATM.COM. Oh sim! Ele lembrava-se perfeitamente de ter estrebuchado. De ter esgrimido um punhado de argumentos. De ter, por fim, levantado a voz contra a política seguida pela organização. De ter, em desespero de causa, esboçado uma violenta reacção contra o modo como as pessoas eram indigitadas...
Inútil. Inútil e inconveniente. A decisão estava, com efeito, tomada. Agora, só faltava selar o pacto. O pacto? Mas que pacto? Ora! Uma espécie de ritual pagão feito, na sua essência, de sangue, de prazer e de tentações pantagruélicas. Um pacto, pois, constituído de desejo, de emoção, de violência, de motivos pagãos, de onde sobressaía, aliás, aquele semblante feminil e quase evangélico que o dominava. Que o arrebatava. Que o apavorava. Que o ensandecia.
Afigurou-se-lhe, de repente, que o guia espiritual o havia escandalosamente tentado. Que o havia marcado, algures, com o emblema da associação. E, na sua mente, desfilavam imagens grotescas, alegorias macabras que evocavam, todas elas, bandos de aves cevadas, figuras dotadas de asas longas e incomensuráveis, de bicos pontiagudos, ameaçadores, sanguinolentos, monstruosos. Eram aves de rapina que irrompiam sobre ele quase em catadupa, que desciam como que em queda livre e que, por fim, desapareciam no horizonte numa espécie de voo picado, envoltas, todas elas, num ruído ensurdecedor e horrendo. Visão traumática de um passado mais ou menos revolto? Perspectiva apocalíptica de um porvir codificado?
Filipe da Rosa dirigiu-se precipitadamente para a janela. Debruçou-se ao de leve no parapeito. Vinha-lhe à superfície uma vontade enorme de vomitar o asco que o invadia. Vinha-lhe ao de cima a revolta surda, que o aturdia. Que o atormentava. Que o dilacerava. Aflorava-lhe à garganta o sentimento repugnante que havia experimentado na véspera. Em que consistia, ao certo, este enorme desassossego? Em que consistia, ao certo, a sua inquietude? E que tipo de sentimento se tratava? Ora, era uma sensação de certa forma nova, estranha, esquiva que tinha os contornos de uma dúvida necessária, básica, alcalina. Era uma incerteza mais ou menos mórbida que lhe assaltava o espírito e lhe oxidava a circulação sanguínea – de alto a baixo. De lés a lés. Em todos os sentidos. E, imóvel, petrificado, inerte, o pobre homem cerrou os punhos. E os dentes. E as pálpebras. E os circuitos internos que o levavam a tudo isto...
Não. Não é possível. Não pode ser possível. Mas de onde é que lhe vinham, meu Deus, todas estas sensações esquisitas, bizarras, incompreensíveis? De onde é que lhe vinha, pois, todo este receio infundado e ilegítimo de vir a ser perseguido por todos aqueles bandos de aves carnívoras? De onde é que lhe vinham, em suma, todas estas visões ininteligíveis, todas estas imagens incongruentes e sem qualquer nexo de causalidade entre elas?
Ele não sabia. Positivamente. E, por mais que tentasse, a pobre criatura não conseguia desvendar, isto é, não conseguia descortinar o segredo, ou melhor, a chave de descodificação, de tudo aquilo. Não conseguia, ao fim e ao cabo, decifrar o enigma que certamente se escondia por detrás de todas aquelas elucubrações nocturnas. Não conseguia, em definitivo, estabelecer um fio condutor entre todas aquelas sensações matutinas e a noite, ou melhor, a soirée que passara naquela sedutora e enigmática cave.
Ah sim! Deve ser isso! Devo ter cometido algum excesso, cogitou. E o homem atribuía esta momentânea disfunção da sua memória a um eventual exagero de tabaco, de bebida, de orgia ímpia. Até porque o álcool irrita, por assim dizer, os sentidos e promove, de alguma forma, o delírio. Até porque o álcool tem este poder – deduzia a criatura – de inibir a capacidade de memória em detrimento da faculdade de sentir. Até porque a embriaguez tem esta característica, ao mesmo tempo fascinante e assustadora, de adormecer o indivíduo civilizado e pensante para atiçar a besta – traduzida, aqui, em desejo, em instinto, em ritual maçónico. Daí que tenha concluído, com toda a propriedade, que toda este alvoroço interior tivesse a sua origem no maldito vício...
Mas não. Filipe da Rosa nem sequer tinha saído. Ele estaria pronto a asseverar e – o que mais é! – ele estaria pronto a jurar que se tinha deitado logo ao anoitecer, após ter seguido atentamente – tal como lhe recomendara a organização – o 20 horas. Assim, toda aquela história de aves de rapina, todo aquele enredo de mulher fatal, feiticeira, herética, toda aquela tramóia de pacto caía natural e simplesmente por terra. Toda aquela gesta não passava, afinal de contas, de uma efabulação mais ou menos incoerente e confusa da sua mente em delírio. Em resumo, toda aquela aventura supostamente vivida durante a famigerada soirée constituía, em última análise, uma pura ficção. Todo aquele universo de vultos constituía uma mera criação literária e romanesca do seu espírito em desagregação. Em ruínas. Em escombros. À deriva, algures, no meio do oceano. Talvez ao largo das ilhas do triângulo. Quiçá um pouco mais além – ali onde a Europa cede porventura o lugar ao abismo do mar…
Com efeito. Só que toda aquela trama de horários a cumprir de forma escrupulosa, toda aquela projecção de datas a observar, toda aquela teia de compromissos, de disfarces, de senhas e contra-senhas, em suma, todo aquele plano A da missão a executar, fazia parte da sua agenda pessoal, tinha substância espacial e temporal, consubstanciava algo de muito concreto e tangível, logo, passível de ser objectivamente referenciado e emergia, como que em bruto, ao seu espírito, subjugava a sua razão incrédula e invadia, passo a passo, todo o seu quarto, toda a sua alma – se é legítimo falar assim de um operacional que nunca havia vacilado face aos seus desafios – e pairava algures no horizonte do seu profissionalismo…
De facto, o homem sentia todos aqueles dados, todas aquelas coordenadas, como um conjunto mais ou menos imposto e ordenado de premissas a levar a cabo em função de um tempo t e de um espaço , mas cujos contornos não sabia ainda precisar. Cujos objectivos inexplicavelmente lhe escapavam. Cuja teleologia lhe era completamente estranha. O ATM.COM era, numa palavra, uma missão que ele tinha de cumprir – quase malgré lui-même – e, pior do que isso, que ele tinha de interpretar por sua própria conta e risco.
Missão? Mas que tipo de missão encerrava, pois, aquele nome de código? E onde é que se encontrava, por conseguinte, a chave de acesso de tudo aquilo? Como encontrar, em último recurso, o fio de Ariana de todo aquele enigma? Não sabia. Tudo quanto vislumbrava – visão onírica aliás recorrente – era a silhueta de um homem de estatura média, de cabelos já grisalhos, ondulados, um homem que acenava, com alguma parcimónia, para uma população mais ou menos eufórica e entusiástica. E, por detrás de todo esse enredo, por detrás de toda essa sucessão de imagens mais ou menos fantasmagóricas, inextricáveis, difusas, e como que lhe servindo de cenário, o homem lobrigava um artefacto moderno e tecnologicamente avançado. Dir-se-ia tratar-se de uma caixa metálica, embutida num velho edifício revestido de basalto...
Filipe da Rosa descerrou os olhos. Eram 8 horas e 45 minutos. Urgia, pois, que se pusesse a caminho para o emprego, na circunstância, para o escritório, sito na rua das Flores, nº 232. Foi exactamente o que fez. Sem mais delongas, sem mais tergiversações, fechou violentamente a porta. Galgou as escadas duas a duas. E saiu... envolto na dor de respirar.
De regresso a casa, Filipe da Rosa quedou-se na Rotunda de Santa Cruz. O relógio local indicava, em caracteres digitais, o dia e a hora: 17:45 do dia 12/06/2005.
Maquinalmente, procedeu à contagem dos meses até ao fim do ano civil. Depois, e sem qualquer motivo aparente, contou as semanas. Depois, os dias. Depois – o quê? Seria, então, verdade? Quer dizer que faltariam, na realidade, três dias para a concretização plena da sua missão? Quer dizer que dali a pouco teria de estar literalmente ao largo do oceano? Impossível. Missão impossível. Faltava-lhe ainda definir as condições materiais mínimas para o sucesso do seu empreendimento. Faltava-lhe ainda perceber as condições de felicidade que presidiriam à concretização da sua tarefa.
Com efeito, onde é que era suposto decorrer a intervenção? E em que circunstâncias assentaria, no fundo, o seu plano de acção? Na realidade, que meios logísticos deveria, por exemplo, ter ao seu dispor? Como poderia, pois, coligir todos os elementos necessários e suficientes à sua execução criteriosa do plano principal? Que estratégia, por exemplo, deveria adoptar no plano de pormenor, se, à data, desconhecia por completo as circunstâncias, as variáveis de contexto, os efeitos paralelos, os custos directos da operação? Em suma, como é que poderia levar a cabo a referida missão se não possuía, até ao momento, a sua planificação, o seu caderno de encargos, a sua memória descritiva?
De repente, esta ideia de que o nome de código encerraria, provavelmente, todos os dados da operação fez com que o seu espírito se iluminasse. Primeiro, encarou-o como uma sigla, cujo processo se solda, como se sabe, por um grande rendimento na actividade política e terrorista. Actividade Transatlântica Mariense... Centro Operacional de Missões... Mas depressa abandonou a hipótese, por lhe parecer de todo inverosímil, até porque, na sua mente, havia apenas a recordação vaga, ténue, longínqua, de um importante aeroporto internacional, depois de um outro, sensivelmente mais pequeno, depois uma embarcação mais ou menos precária e amadora, ou seja, tudo se resumia, na sua desconexa memória, a um arabesco de percursos de longa distância, de rotas aéreas, de transbordos regionais, de equipamentos aerotransportados...
Equipamentos? Mas que tipo de equipamento? O que é que lhe seria, na verdade, necessário para, desse modo, cumprir religiosamente a sua tarefa? O que é que a organização esperaria mais do homem? O que é que exigiria mais do profissional? Até onde chegaria a ousadia, a desfaçatez, a depravação dos mentores da ATM.COM?
Com efeito, que sabia, ao certo, a pobre criatura? Isto, que, depois do grande fiasco da sua última missão, o aparelho lhe retirara toda a confiança, muito embora o seu grau de profissionalismo e eficácia tivesse permanecido intocável. Na realidade, agora, apenas lhe faziam chegar as mensagens estritamente indispensáveis ao bom desempenho da sua actividade. E mesmo essas, informações de todo em todo preciosas, capitais, lhe eram, doravante, enviadas de forma assaz subtil e sempre num estilo perfeitamente telegráfico para os locais menos esperados, isto é, para os sítios que lhe eram, à partida, mais desconexos, mais discordes – perfeitamente aleatórios. Aliás, nesta matéria, o operacional já não alimentava qualquer tipo de ilusão: a conduta obedecia, como é óbvio, a uma estratégia montada do interior, partia das hierarquias intermédias, e tinha como finalidade primeira, a de o desacreditar, a de o denegrir – e, em última análise, pretendia atingir, em pleno, a sua elevada eficiência profissional. Tratava-se, pois, de um plano premeditado, urdido no receio da sua promoção interna. Tratava-se, em suma, de o colocar fora de combate. Fora das lides do poder tentacular. Sem mais.
Subitamente, Filipe da Rosa teve uma ideia. É que qualquer coisa lhe dizia que deveria ser lá, naquele lugar, que haveria de encontrar, enfim, um elo de ligação, um nexo de causalidade, entre a sua missão próxima, aliás, eminente, e o turbilhão de rotas, de dados, de elementos esparsos que o assaltavam a cada instante. É que algo lhe fazia crer que, com efeito, seria lá, naquele lugar, que encontraria a razão das coisas que o atormentava, que o dilacerava, que o triturava. Assim, e sem qualquer motivação aparente, rumou em direcção ao aeroporto da cidade. Assim. Sem descortinar lá muito bem a razão que o impelia…
Já na aerogare, o operacional dirigiu-se, um pouco ao acaso, a um balcão de uma companhia aérea:
– Bom dia! Em que lhe posso ser útil? – indagou, do interior, uma jovem vestida a rigor, numa expressão ao mesmo tempo de desafio, de cumplicidade, de inteligência.
– Muito... muito bom dia. Gostava que me dissesse. Que me esclarecesse –
– Santa Maria a dourada.
– Pico de actividade do Corvo?
– Terceira lua a contar de hoje.
– Rota 23L confirmada?
– Escala Flores Porto Corvo. ATM.COM. A partir deste exacto momento, em contagem decrescente: 47:59:27
Filipe da Rosa ficou que aturdido, atónito, boquiaberto. E quando se preparava ainda para perguntar algo sobre o assunto em causa, quando procurava reagir à enigmática instrução, a rapariga do uniforme, essa, sempre com o seu largo sorriso, sempre com a sua expressão dúbia, meteu-lhe na mão, de forma algo abrupta e intempestiva, uma chave supostamente pertencente a um cacifo. Assim, de ora em diante, o homem possuía de facto o modo de acesso da sua enigmática missão. Ele sabia que tinha, ali, ao alcance de um simples gesto, aquilo que lhe faltava saber e que consistia, no essencial, no modus operandi da sua importante tarefa, ou seja, que consistia, enfim, em tomar detalhadamente conhecimento das variáveis situacionais da acção, designadamente os meios colocados à sua disposição para levar a bom porto os seus intentos, ou melhor, para atingir todos os objectivos gerais propostos pelo Movimento...
Mas, no fundo, para Filipe da Rosa, de 42 anos de idade e toda uma vida consagrada à organização, toda aquela questão de voo que não podia faltar, toda aquela questão de carreiras aéreas que não podia alterar, toda aquela questão de porto marítimo que não podia esquecer, em resumo, toda aquela história de alvo que não podia falhar, tudo isso lhe parecia já pertencer a um passado mais ou menos revolvido, ou seja, toda a operação lhe parecia já fazer parte de um campo de experiências mais ou menos fossilizado e que, de quando em vez, emergia à superfície sob a forma de imagens dispersas e muito pouco consistentes. Com efeito, havia, na sua memória, uma lacuna que faltava preencher. Havia, na sua memória, uma falha orgânica, um espaço vazio que faltava completar. E, por mais que procurasse, o homem não encontrava, nos seus ficheiros secretos, nenhuma hermenêutica, nenhuma teoria interpretativa capaz de ligar os factos entre si, capaz de explicar o fenómeno...
Última chamada para o voo SP 421K com destino à Terceira. Portas de embarque: 2 e 3.
Filipe da Rosa tomou apressadamente o seu café matinal e dirigiu-se, como que um autómato, para a plataforma de embarque. Consigo levava, tão-só, um pequeno saco, contendo alguns objectos pessoais e no seu espírito inquieto, pusilânime, exangue, era possível adivinhar-lhe um certo desconforto interior, uma certa angústia, um indelével sentimento de dúvida, de incerteza, de interrogação. Porquê? Ora, provavelmente devido ao papel efectivo e concreto que era suposto desempenhar em todo este imbróglio. Por certo, devido ao caos interior que o oprimia pelo lado de dentro da sua razão. Com toda a certeza, por causa de toda esta confusão de alvos a atingir, de objectivos que se diluíam na sua consciência em moratória…
De facto, o que é que ele, Filipe da Rosa, estava ali a fazer? Na realidade, o que é que esperariam dele naquela posição avançada e sem qualquer apoio na retaguarda? Mais. Que fatalidade era esta que o colocava, de novo, num projecto tão arrojado, sobretudo depois do seu último – e único – fracasso profissional? Que corrente mágica era esta, afinal, que o dominava, que o fustigava e que, no fundo, o agrilhoava ao seu passado recente? Que força era esta, pois, que o arrastava, de forma tão irredutível, de forma tão absoluta, de forma tão poderosa e irracional, para uma aventura sem nome e para um alvo sem rosto? Que fascínio era este que o apelava para o desconhecido, para o infinito, para o despenhadeiro? Numa palavra: que fado era este, meu Deus, que o compelia, que o arrastava, uma vez mais, para um abismo incomensurável, descomunal, quiçá sem retorno?
Mas que importava, ao fim e ao cabo, ao homem – ao homem e ao profissional – saber a motivação profunda dos seus próprios actos? Que lhe importava saber, por exemplo, que o sol nascia a tal hora, que atingia o seu auge a determinado momento e que o ocaso, esse, ocorria numa qualquer outra hora, num qualquer outro lugar? Que importava, a Filipe da Rosa, saber que um certo rio – ou um dos seus afluentes – nascia a montante de um determinado ponto do espaço, que se ramificava aqui e ali ao longo do seu percurso e que desaguava, algures, a jusante, num outro ponto do globo. Que importava, à pobre criatura, saber que todos estes vasos comunicantes constituíam, de uma ou de outra forma, o sistema de irrigação fulcral para o bom funcionamento do planeta? Que importava saber que tudo isso constituía, por assim dizer, o seu elemento vital, o seu sangue, a sua seiva, a sua força centrípeta, a sua neguentropia? Que importava, ao exímio profissional, saber que um determinado curso de água permanecia inerte, que o seu caudal havia sofrido uma eventual alteração, que o seu leito havia secado, que o elemento humano havia estancado a sua fonte? Em resumo, que importava ao operacional saber a etiologia das coisas simples e banais, se a água, essa, há-de por certo, voltar a jorrar de um qualquer outro lugar, de um qualquer outro berço da natureza mãe?...
Não. Tudo isso não tinha a menor importância. Sobretudo, depois do seu recente desastre como profissional, não é? Mas acaso se lembravam eles, os mentores do aparelho, acaso se recordavam eles do trabalho limpo, da acção eficiente, do grau de proficiência das missões que, durante anos e anos a fio, havia levado a cabo em vários pontos do globo? Acaso se recordavam eles do mérito, da excelência, da magnificência que tantas e tantas vezes lhe reconheceram e cuja performance invariavelmente premiaram? Acaso se esqueciam eles de que fora considerado, mesmo pela Comandante-chefe das Operações Secretas, como o mais brilhante, o mais capaz, o mais hábil de todos os activistas da organização? Não. Tudo isso não teria, por certo, a menor importância. Tudo isso – não tinha a menor dúvida – seria relegado para segundo plano. Tudo isso seria, em suma, absolutamente esquecido – ao abrigo do sigilo profissional…
De facto, o que mais importa na vida – pensava Filipe da Rosa – era saber gerir os desaires da vida. O que realmente importa e conta e apraz registar é saber capitalizar, em cada momento, o preço da glória – pelo lado de dentro do sofrimento alheio. O dos outros – que não o dele. O que realmente conta é gravar na aguarela da sua existência, o seu pathos, a sua rota, o seu sinete.
De súbito, Filipe da Rosa puxou do seu bloco de apontamentos, uma espécie de diário de bordo onde ele costumava registar as suas celestes impressões, os seus elevados pensamentos, as suas altas divagações, e começou calmamente a escrever na página relativa ao dia 14 de Julho de 2005:
o oceano largo revoltoso
cinge-te a cintura bela
estreita longitudinal esguia
e tu tu ranges tu gemes tu danças sem parar
a vaga ali suave aqui severa
roça sulca atiça excita
cada recanto cada meandro
do teu corpo cansado da tua alma em riste
e tu tu ficas algures
a meia distância por exemplo
de uma velha e gasta canada sem bagacina
as mãos na ilharga
o rosto amargo os olhos vagos
contemplando quase pasmada o imenso desafio
e no interstício de tudo isto
no meio de tudo isto que vês e que dominas e que abraças
só tu sabes espaço feito ilha
só tu sentes que cada dia que ora passa
que cada hora que ora avança
é um copioso porvir em forma de fuga
em direcção ao desejo rumo ao sonho a caminho do nada
que lá ao longe permanece preso numa lancha
quase em agonia perto do pico da Esperança
só tu corpo alma ilha só tu sabes
decifrar o enigma mitigar os ais
que ficam à solta deste lado do porto
aqui mesmo junto ao pardacento cais
para lá do código de acesso mantido em segredo
para lá do pavoroso e compulsivo degredo
à espera talvez da outra metade da história
que na hora do regresso ao lar primeiro
falta reunir a saber o velho faroleiro o grupo central
o triângulo de bruma a imensidão insular
E, um pouco mais abaixo, numa caligrafia de certo modo artística, podia ler-se a seguinte mensagem, aliás, ininteligível:
Lx chav acess // 2 Cx Eq Flow /// Dia -2 D
Filipe da Rosa sentia-se, numa palavra, um ser estranho. Emergiam, à sua depauperada memória, vários retalhos do seu passado mais ou menos remoto, e, nesse exercício de divagação espontânea, identificava pedaços da sua terra natal, distinguia timbres de vozes familiares e significativas, reconstituía parcelas de acontecimentos em que participara, quer como actor, quer como testemunha ocular, mas, apesar da historicidade dos factos, apesar da factualidade dos acontecimentos, a verdade é que tudo aquilo lhe parecia ainda não ter ocorrido. Na realidade, parecia-lhe que todo aquele passado fazia parte integrante de um futuro que lhe faltava ainda viver. Em suma, parecia-lhe que todo aquele filme fenomenologicamente déjà vu não tinha sido ainda experienciado. Ainda não era.
E, no meio de tudo esta agitação interior, no meio de toda esta fantasia, Filipe da Rosa reconhecia, ainda que muito vagamente, a imagem acinzentada de uma ruela bastante estreita e tortuosa, apinhada de gente. Vislumbrava, de forma indefinida, um edifício que lhe fazia lembrar a velha agência bancária da sua aldeia e, embutido nessa construção de basalto, afigurava-se-lhe distinguir um enorme cofre metálico, uma espécie de caixa-forte, diante do qual lhe parecia entrever a figura de um homem acenando, de forma firme e recorrente, para uma multidão que, por seu turno, lhe retribuía mimeticamente a simpatia. Eram vultos, gente anónima, que aplaudia, que se agitava, que cumpria por assim dizer um ritual em trajes de cerimónia. Aliás, ao longe, dir-se-ia tratar-se de uma filarmónica que actuava junto de um palco improvisado com toda a certeza…
O operacional não sabia, com toda a justiça e imparcialidade, se todas estas imagens pertenciam a um passado mais ou menos longínquo ou se se tratava, antes, de uma espécie de antevisão de acontecimentos futuros. Não. O activista não podia descortinar, com clareza e objectividade, se tais visões tinham, de algum modo, a ver com experiências já vividas – e cujo conteúdo a sua imaginação, em delírio, não podia todavia ordenar, classificar e situar no tempo e no espaço – ou se essas mesmas imagens fantasmagóricas, assustadoras, obsessivas, se ligavam, de uma forma ou de outra, a uma espécie de memória do futuro, isto é, a uma espécie de cálculo de probabilidades de um determinado evento. Com efeito, assim como todo e qualquer acontecimento é absolutamente previsível em função de um certo conjunto de observáveis e de variáveis de contexto, também o sucesso de qualquer empreendimento – inclusive o coeficiente da eficácia da operação – é mensurável em função dos objectivos a alcançar, da performance intrínseca dos actores envolvidos, dos meios materiais disponibilizados, da estratégia utilizada, da metodologia implementada. Em guisa de resumo, dir-se-ia que o resultado é, antes de mais, função do todo avaliativo.
Não obstante estas considerações mais ou menos gerais, mais ou menos filosóficas e empíricas, a verdade é que o passado e o futuro se misturavam, se confundiam, se diluíam no palimpsesto da sua memória. Assim era. Filipe da Rosa sentia que havia, algures, uma enorme brecha no seu registo mnemónico. Ele tinha a vaga sensação que o continuum se havia irremediavelmente alterado. Ele achava-se, por breves instantes, incapaz de perceber a trama das suas próprias ideias e deveras impotente para inferir o grau de coerência e de coesão de tudo isso. Em resumo, a criatura não podia, por exemplo, assegurar, com toda a convicção e certeza, se todo aquele caudal de representações mentais, se todo aquele conjunto de juízos de valor, tinha origem apenas no seu espírito desvairado, desabusado, depravado, ou se todas aquelas sequências impressivas assentavam, de um modo ou de outro, numa realidade mais ou menos próxima ou distante.
O indivíduo sentia-se, sobretudo, cansado. Esgotado. Exausto. Profundamente desmotivado. Quiçá algo perseguido, tal um Jean-Jacques das Rêveries diante do altar de da Catedral de Nossa Senhora de Paris.
Num outro ponto da viagem, o operacional, em desespero de causa, abriu um livro, na circunstância, Manifestos do surrealismo, mas cinco minutos depois voltou a colocá-lo no saco: era-lhe de todo em todo impossível concentrar-se na leitura de André Breton – uma estética bem particular e bastante curiosa que ainda não tinha sabido digerir... Após breve reflexão, o profissional optou, não sem razão, por uma actividade mais adequada ao momento, neste caso, pela recriação livre da fábula composta por G. H. Reavis, inspector das escolas públicas de Cincinnati, USA – e cujo resultado final é aquele que se transcreve:
VANTAGENS DA CONFORMIDADE...
FÁBULA DEDICADA ÀS GENTES DA POLÍTICA.
Era uma vez... STOP.
Neste caso preciso, os animais acharam por bem que era mais do que tempo de encontrar uma solução radical para fazerem face aos sérios problemas do MUNDO NOVO.
O que é que fizeram? Ora, começaram por organizar um sistema político lá no burgo e fixaram como actividades do programa governamental, as seguintes competências de base: saber correr, trepar, nadar e voar. E, para facilitar o trabalho de cada um, decidiram, então, que todos os animais deviam possuir um determinado perfil de entrada, pois que, no seu entender, um político deveria possuir alguma formação inicial...
O PATO, esse, nadava muito bem, melhor até que o seu próprio ministro, mas – confessemos! – mal chegava à mediania no voo. Na corrida – coitado! – revelava-se muito fraco. Estava tão atrasado nesta matéria que, acabada a reunião, tinha de ficar mais tempo a repetir o que não deveria proferir em público. Resultado: abandonou a natação para se treinar na corrida e isto até os seus pés, espalmados, ficarem em tiras. É claro que a prestação conseguida na natação desceu abruptamente, mas – diga-se com toda a franqueza – um deputado médio é muito aceitável em qualquer parlamento e ninguém, até hoje, se afligiu com o caso, a não ser o desgraçado pato...
O COELHO, altivo, finório, dextro, encabeçava a classificação na corrida, ia de gabinete em gabinete, de conferência de imprensa em conferência de imprensa mas – oh infortúnio! – sofreu uma profunda depressão nervosa, tal era o seu caudal de trabalho para conseguir nadar nas águas turvas do sistema vigente...
O ESQUILO, senhores, era excelente a trepar, exímio mesmo, até ser atacado por um complexo agudo de culpa em pleno curso de voo, pois o primeiro-ministro queria que ele arrancasse do pé da árvore para o cimo, em vez de se apoiar nos ramos como muitas vezes fazia. O que é que lhe aconteceu? Apoiou-se num ramo verde, caiu, apanhou uma valente entorse, não apenas devido à sua extrema boa fé, mas também – e sobretudo? – em razão do cansaço excessivo. Em suma, o pobre desventurado ficou nos últimos lugares na subida ao lugar de responsável pela concelhia e na famigerada corrida à distrital.
A ÁGUIA, desdenhosa, arrogante, imperial, constituía aquilo que na gíria profissional, se designa de caso-problema: candidato independente, sem disciplina de partido e sem espírito de sistema, era um político completamente fora do aparelho. No trepar aos lugares mais altos da direcção do partido, por exemplo, batia os outros e chegava sempre primeiro ao cimo da hierarquia, mas, em contrapartida, recusava-se a seguir as normas estabelecidas pelas normas em vigor.
Quase no fim do ano parlamentar, uma ENGUIA normal – perfeitamente normal! – que se mexia maravilhosamente como todas as restantes enguias e que corria, trepava e voava um tudo nada, acabou por obter a melhor classificação do sistema avaliativo imposto pelo governo e, como é óbvio, transitou, a título excepcional, para o escalão subsequente.
BASTA!
Foi então que os CÃES, indignados, revoltados, enraivecidos, organizaram um piquete de greve diante da Assembleia da República e se recusaram a pagar os seus impostos, pedindo em sede de Parlamento, que fosse acrescentado ao novo programa do governo (i) a arte de escavar o chão e (ii) de fazer uma cova a custo reduzido – quando não a custo zero...
Finalmente, já desesperados, entregaram estas propostas a um TEXUGO, que, à data, se encontrava na oposição, e, mais tarde, chegaram a um acordo de cavalheiros com os ARGANAZES e as TOUPEIRAS para fazerem aprovar por maioria parlamentar qualificada as suas propostas, de preferência com a adopção de medidas alternativas, com introdução de variáveis de contexto regional, de regimes de apoio educativo especial e, por fim, com a inclusão de planos de segunda oportunidade, cujos programas flexibilizados, segundo dizem, prometem bastante...
O homem mal acabara a leitura do artigo quando a tripulação da aeronave dava instruções para que os passageiros recolhessem as mesas, apertassem os cintos, endireitassem as costas das cadeiras...
Chegado ao aeroporto da Terceira, Filipe da Rosa apanhou, como havia sido superiormente previsto, o avião da SATA com destino às Flores. Na realidade, seria lá que teria de procurar, segundo rigorosas instruções, o equipamento de que necessitaria para se deslocar, por via marítima, à ilha do Corvo.
Equipamento? Mas, Deus meu, que equipamento? Se ninguém lhe tinha falado, até ali, de qualquer outro material, a não ser de uma precária embarcação que o havia de levar, durante a próxima noite, até ao extremo sul da ilha – o que, de resto, estava desde há muito planeado até ao mais ínfimo pormenor. A não ser... A não ser que houvesse ainda um conjunto de instruções que!... Mas vejamos!... E a chave que lhe fora entregue ainda antes do embarque?!... Sim! Aquela mesma que continha um nome de código?!... Aquela mesma que ostentava uma inscrição que ele próprio descodificara sem qualquer dificuldade?!...
Filipe da Rosa lembrou-se, de repente, que tinha de se deslocar ao cais. Sem demora. Porquê? Porque era lá, com efeito, que um dos colaboradores da organização o esperava. Porque era lá que o profissional teria acesso, por outro lado, aos aspectos pormenorizados da operação, a saber, o local exacto, o modo como se deveria desenrolar o ataque e o destinatário último da sua missão. Porque era lá, enfim, que ele iria satisfazer toda esta curiosidade simultaneamente legítima e febril de aferir, in situ, acerca das condições de felicidade da sua intervenção, a saber, as condições geoestratégicas, os condicionalismos climatéricos, as variáveis situacionais, a natureza do alvo a atingir, em suma, era lá que o homem iria aquilatar, in loco, acerca do eventual grau de desfasamento entre os objectivos gerais preconizados pela organização e a exequibilidade real do projecto.
Certo. Importava, sobretudo, como aliás lhe fora dito pela própria mentora da intervenção, que fosse rápido, objectivo e eficaz na sua acção, de molde a não provocar graves efeitos colaterais. Mas fora-lhe igualmente assegurado que, mais importante do que os custos humanos, seria alcançar o êxito requerido pela organização. Era aliás imprescindível que a tarefa, da qual ele havia estado ab ovo inexoravelmente incumbido, fosse consumada em todas as suas exigências e parâmetros, sob pena de ter a sua cabeça a prémio, isto é, sob pena de se ver condenado à morte por procuração...
Já não havia, por conseguinte, quaisquer dúvidas sobre a matéria de facto? O homem que ali se encontrava era de facto ele, Filipe da Rosa, em carne e osso? Assim era, na realidade. E, em plena actividade onírica, o operacional levava consigo um plano de acção, ou melhor, uma espécie de condenação ao fracasso de um empreendimento, cujos contornos ainda não conhecia em toda a sua amplitude. Cujos resultados, pouco claros, o apavoraram. Cujas consequências, envoltas em secretismo, não teriam sido ainda bem calculadas...
Mas…! Onde é que se quedava o valor da vida humana que ele, de resto, tanto apreciava? E como conciliar o alfa e o ómega? E como reunir numa só criatura o humanista, por um lado, o homem que acredita no seu semelhante, no seu próximo e, por outro, o homem da praxis, o pragmático? Oh sim! Ele percebia naturalmente o valor da vida humana em termos proficiência académica, em termos de ética profissional, em termos de impacto mediático das operações do momento – mas nunca como uma estética do romantismo, nunca como uma sobrevalorização do eu em detrimento do colectivo. Aliás, nessa matéria percebia muito mal o desenlace do protagonista de Nadja que refere pateticamente um “desejo que seja loucamente amada” quando ele, Filipe da Rosa, teria tendência para dizer – ou fazer dizer – em guisa de lítote “desejo que a tarefa não traga qualquer dano colateral acrescido”.
Não obstante todas estas bolsas de ambiguidade, já não havia, por conseguinte, espaço para duvidar de que tudo aquilo era verdade. Assim, toda aquela ilha, o Corvo, na circunstância, estremecera durante alguns breves minutos em resultado da violenta explosão. Toda aquela gente, simples e empedernida, rústica, fugira, espavorida, assustada, atemorizada, para as suas casas. Toda aquela pequena multidão de pessoas que assistia, na altura, à cerimónia oficial, gritava, soluçava, gemia ainda. E o som surdo deste pânico imenso teimava em mergulhar nas águas frias, silenciosas, atónitas do Atlântico. Teimava em permanecer nos tímpanos dos que sobravam. Teimava em prolongar-se nos tímpanos dos que soçobravam...
Mas que teria sido aquele tumultuoso e medonho estrondo? Que teria sido aquele ruído louco de vozes em delírio? Que teria sido todo aquele clamor de multidão em fuga? Filipe da Rosa ousou, numa fracção de segundo, olhar para trás. Não por receio. Não por curiosidade. Não por vaidade. Apenas e somente para legitimar a visão que o apoquentava e o perseguia. Apenas e somente para justificar a sua perícia na matéria. Apenas e somente por questão de metodologia profissional, ou melhor, para apor, no objectivo previamente definido, o seu cunho pessoal, a sua assinatura, a sua chancela.
E o que é que observara? Ora, observara, por exemplo, que, aqui, neste espaço gregário, já não havia agência bancária, pelo menos nos termos em que ele a conhecera na véspera, neste sentido que o edifício de basalto ficara, de um momento para o outro, esventrado numa das suas extremidades. Percebera que, aqui neste último reduto do neoliberalismo, já não havia máquina ATM, símbolo supremo, para o Movimento, da corrupção das sociedades ocidentais. Constatara que, aqui, no ponto mais remoto do velho continente, já não existia o crime que constituía, para a organização, a transacção imperialista, pelo menos enquanto acto instituído e institucionalizado pelo poder económico vigente. Compreendera que, aqui, neste último refúgio dos latifundiários, já não existia o refinado sistema de exploração e de especulação comerciais. Apreendera, isto é, concluíra que, aqui, nesta exígua e paradisíaca ilha, já não existia o poder vil, repugnante e conspurcado do dinheiro... de plástico. Em resumo, o domínio .COM acabava de sofrer um enorme abalo nas suas fundações. Na sua política consumista. Na sua ostentação tecnológica. Na sua estrutura económico-financeira.
Que mais ainda? Vira também algumas dezenas de corpos estendidos na calçada fria, cinzenta, inerte da rua. Apercebera-se ainda de um ancião, de olhos vazios, de esgar paroxístico, com o indicador apontado na sua direcção, a exalar, por certo, o último suspiro. Tivera ainda tempo de avistar uma criança que apertava desmesuradamente numa das mãos o seu brinquedo, na circunstância, um carro de combate da U.S. Army sarapintado de vermelho. Ah! Vislumbrara também um cagarro, um enorme cagarro, que, aturdido, esgazeado, perplexo, mergulhava, em queda livre, nas águas límpidas e cruas do oceano...
Filipe da Rosa levantou-se, todo ele banhado em suor. Havia, no seu corpo, marcas visíveis de uma luta feroz, extraordinária, medonha. Havia, no seu rosto, sinais indeléveis de uma luta corpo a corpo alma a alma corvo a corvo. Havia, na sua expressão fisionómica, traços evidentes de um enorme cansaço, de uma grande consumpção, de uma extraordinária fraqueza – e o contrário de tudo isso. Mas não só. No seu olhar, era possível adivinhar-lhe um misto inexplicável de terror, de angústia, de contentamento. Era possível antecipar-lhe, por breves instantes, um sentido de alívio, uma sensação invulgar de expurgação da pena, uma impressão mais ou menos vaga de resgate, de alforria, de redenção.
O homem dirigiu-se, no meio desta torrente de pensamentos, à cozinha, no intuito de iludir a fome que o avassalava. E foi justamente neste instante que reparou, um pouco por acaso, no grande relógio que se encontrava em cima de um móvel algo vetusto. Era quase uma hora da tarde. Mas!... Seria possível? Seria possível que ele, Filipe da Rosa, o exímio operacional, o homem tímido, tivesse perpetrado um acto tão… tão... Não. Filipe da Rosa não seria capaz. O homem era menos positivista e mais Breton. Ele era um surrealista – e ponto final.
Mas onde é que ele terá então estado? Onde é que ele terá, por exemplo, passado a noite? O que é que ele terá feito durante todo esse tempo? Terá, por acaso, vivido uma longa noite de insónias? Terá, por acaso, permanecido durante toda a madrugada e aurora, em perfeito estado de vigília? Terá, porventura, saído, quer dizer, terá entrado, por exemplo, num bar, num pub, numa discoteca? Terá, em última análise, bebido em excesso e, por conseguinte, perdido momentaneamente a consciência?
O profissional exemplar do Departamento das operações rápidas não se lembrava. Decididamente. Tinha apenas a penosa e jucunda impressão de que todo aquele pesadelo constituía, de algum modo, uma espécie de prolongamento das suas próprias vivências e elucubrações pessoais. Afigurava-se-lhe, com efeito, que todas aquelas imagens faziam intrinsecamente parte de si próprio e, por isso mesmo, estava pronto a garantir que tudo aquilo, isto é, que todo aquele terror e sofrimento constituíam, por assim dizer, a sua verdade, a sua conexão com o real – a sua razão de ser. Em suma, ele tinha estado lá.
Finalmente, ele compreendia, o que é que tudo aquilo significava para si. Ele tinha a consciência clara e objectiva de que todo aquele espectáculo mórbido – que todavia o oprimia – obedecia, na sua essência, a uma certa lógica interna. E, o mais curioso, o mais estranho, o mais extraordinário, é que ele, no pleno uso de todas as suas faculdades intelectuais, sentia que todo aquele discurso imagético, que contudo o dilacerava, que todavia o corrompia pelo lado de dentro da sua alma, continha, em si mesmo, uma coesão muito própria e, em último recurso, uma coerência sistémica pouco comum no mundo do onirismo – lá, justamente, onde a subjectividade reina e subjuga e avassala o seu próprio objecto.
Filipe da Rosa, depois de ter devorado, à pressa, um naco de pão com manteiga e de ter tragado um café express, ligou, sem motivação aparente, uma estação de rádio não identificada, cuja notícia de abertura consistia no seguinte:
“Hoje, dia 16 de Julho, volvidos seis anos sobre a inauguração da primeira caixa Multibanco na ilha do Corvo pelo ainda Presidente da República, que, de resto, presidia à cerimónia, o inesperado aconteceu. Uma violenta –”
Filipe da Rosa desligou o aparelho, com um certo nervosismo à mistura. Com um grande sentimento de insegurança, também. Com uma certa expressão de desespero, enfim. Mas?... Por que razão?... Mas que terá acontecido, ao certo? Será possível, então, que ele?... Não. Não era possível. Não podia ser verdade. Simplesmente, não podia... O terminal ATM não se transformaria, por certo, numa eventual caixa de Pandora.
Todavia, o fantasma da incerteza encheu toda a cozinha. Invadiu o pequeno apartamento sito numa das mais importantes artérias da cidade Transbordou para o espaço exterior. E ganhou forma, quer dizer, foi ganhando forma. Gradualmente. Implacavelmente. Tornou-se, na circunstância, numa espécie de sombra mais ou menos fantástica, numa espécie de avantesma de contornos indefinidos, vagos, ilimitados, pairando, algures no horizonte. Pairando, algures, sobre a sua consciência. Pairando, algures, sobre as areias movediças das suas magras certezas. Ameaçando, enfim, todo o universo.
© Manuel Fontão
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