in Histórias de Professores
Segunda-feira, 20 de Outubro de 1986
Naquela manhã, António levantara-se cedo, como era de resto seu timbre. Sentia no peito uma vontade férrea e indomável de lutar por uma vida diferente, quiçá uma vida melhor. Ah! Curioso! Uma vida melhor!... E em que sentido? E como? E para quê?... E para quem?...
O que ele, no fundo, chamava vida aparentava-se, mais ou menos, a um somatório de pequenas humilhações, a um punhado de pequenas grandes desilusões. Oh sim! A existência, a sua, neste momento conturbado do seu percurso, não tinha substância, não fazia qualquer sentido, mais não era do que um conjunto de dias que desenrolavam cronológica e penosamente uns atrás dos outros – o que, tudo somado, perfazia uns miseráveis 25 anos!. Em suma, o homem tinha a sensação de que, apesar da sua juventude, apesar do fulgor dos seus anos, já era velho, vetusto, fora do prazo de validade. Sentia-se, apesar de jovem, incompreensivelmente velho e esfalfado antes do tempo, antes de ter sido usado pelas malhas do destino!…
Não obstante este turbilhão de sentimentos que o refreava e, ao mesmo tempo, o impelia, António sonhava ainda. E como ele sonhava, deus meu!... Sonhava com um amanhã prenhe de esperança, com uma carreira de sucesso, com uma família – a sua. Sonhava, em última análise, com coisas tão simples e banais, como a maior parte dos jovens da sua idade. E era justamente isso que o fazia viver, era isso mesmo que o fazia levantar-se a cada manhã. E fazia-o com o mesmo querer e com a mesma confiança que o haviam abandonado na véspera, fazia-o com o mesmo espírito combativo que o havia traído horas antes. Convenhamos! As almas generosas têm isto de particular que não levam a sério o sofrimento superveniente do passado: elas projectam-se de forma mais ou menos mística num amanhã incerto e acreditam piamente que o esforço valerá porventura a pena. E é por isso que vivem. E é por isso que lutam e enduram. O António, ele, possuía ainda, no seu mais íntimo reduto, a esperança de vir, um dia, a ser feliz.
Já na rua, o jovem sentiu-se súbita e estranhamente só. Sentiu-se órfão de pai. Sentiu-se órfão do mundo. Sentiu-se órfão de si próprio. Mas, o que noutra pessoa qualquer, seria um motivo para desistir da pugna, nele, o facto constituía mais uma razão para se empertigar, acrescentava mais um motivo para se entregar à luta. Certo. Tratava-se de uma luta desigual, de uma luta injusta que ele travava contra os outros e consigo próprio, mas não havia opção. O caminho era por ali. O caminho, esse, estaria por sua própria conta e risco, e António tê-lo-ia de subir a pulso, isto é, as dificuldades, tê-las-ia de desbravar sozinho e sem qualquer ajuda de terceiros –como todos nós.
Claro que, para a maioria dos colegas e amigos de curso, o projecto de vida, o projecto de vida deles, apresentava-se, à partida, perfeitamente linear, era aparentemente fácil de levar a cabo, obedecia, por assim dizer, a uma formatação prévia dos dados geneticamente herdados: concluiriam, por certo, uma formação superior no tempo previsto para o efeito, iriam certamente gozar a lua-de-mel para paragens longínquas e exóticas, segundo aliás os caprichos insolentes de cada um dos nubentes e, regressados, encontrariam, por certo, o seu espaço novo em folha, quer dizer, um lar arquitectado na sua retaguarda, uma casa comprada segundo a sensibilidade especiosa dos recém-casados, quando não dos pais, e, à entrada do grande salão de visitas, em grande plano, deparar-se-iam com o certificado de curso que, entretanto, os seus pais, sempre dados a este tipo de coisas, já teriam ido requerer à faculdade contra o pagamento dos respectivos emolumentos. Assim seria! Ao jovem casal, só restaria resolver o problema das gerações vindouras, de cuja matéria se ocupariam em tempo útil, até porque importaria perpetuar os genes, o nome de família, o património. Sim! Seria de suma importância, desde já, preparar eficazmente a passagem de testemunho que, dentro do bom espírito burguês, se resumiria, na sua essência, à tramitação legal dos bens de família, que, entretanto, haveriam de acumular…
António discorria acerca deste estado de coisas quando entrou finalmente no estabelecimento. Pediu um café e sentou-se numa das mesas, lá ao fundo. Depois, pegou maquinalmente no jornal diário e, facto curioso, deparou com um anúncio que o despertou da letargia. Sim. Ele tinha ouvido, desde há alguns a esta parte, vagos rumores, remorques inconsistentes, segundo os quais os Açores se deparavam com uma enorme carência de professores, e, hoje, quase que por acaso, tinha a prova disso mesmo nas mãos, tinha o Jornal de Notícias sobre a mesa, aberto na página dos classificados, em que se podia ler, em letras garrafais:
PRECISA-SE
PROFESSORES
POVOAÇÃO (S. MIGUEL)
e conseguia ler, em letras muito miudinhas que os candidatos viriam a receber, em caso de aceitação, ajudas de custo, acrescidas de um subsídio de deslocação mensal mais casa paga pela respectiva Associação de Pais.
O homem hesitava. Estava no 2.º Ano da Universidade, no velho Campo Alegre, n.º 1455 e pensava seriamente em interromper, por tempo indeterminado, os seus estudos para, desse modo, poder abraçar uma carreira profissional que, de resto, se antevia promissora. Claro que, no imediato, o jovem, agora com 25 anos, iria perder bastante. Pertencia aos quadros dos TLP, auferia de um salário um pouco acima da média nacional, usufruía de um estatuto de estatuto-trabalhador que lhe permitia gerir parcimoniosamente a sua carreira académica, em suma, António vacilava perante uma dúvida indecifrável.
Com efeito, a decisão não era de fácil avaliação. Teria ele, por exemplo, vocação para o ensino? Sentir-se-ia ele dotado de um espírito missionário, tal como parece requerer a tarefa? Não. Ele não se sentia particularmente tocado por um espírito de missão. Aliás, a missão, se ela existia, só servia para tolher os espíritos e toldar a luz da razão; logo, ela, a missão, estaria ao serviço da mediocridade e nunca da excelência. Ora, António era – poder-se-ia asseverar – uma pessoa capaz de se adaptar a tudo, era dotado de uma grande plasticidade, mas nunca seria capaz, por exemplo, de enveredar por uma profissão que comprometesse as suas mais profundas convicções. Nunca! Não! Ele não se via, em caso algum, a abraçar uma vida profissional assente na exegese, assente nos princípios do sacerdócio – e isto diz tudo sobre a sua probidade, ou melhor, é afirmar, sem qualquer tibieza, a sua fidelidade a si próprio. Não! Ele não seria, em caso algum, o tartufo dos tempos modernos. Ele era autêntico. Era genuíno. Era honesto.
O estudante, por vezes, não compreendia estas interrogações, de resto, tão mesquinhas. Não conseguia, sobretudo, explicar este gosto tão acicatado pela análise caleidoscópica. Não conseguia justificar este romantismo avant la lettre na altura de tomar decisões importantes. Mas o que ele, sobretudo, sentia, era uma dificuldade dificuldade em separar a parte de missão que supostamente existia no professor, e, correlativamente, a parte técnico-profissional que lhe estaria inerente, quer dizer, que lhe seria, porventura, intrínseca…
O jovem não sabia ao certo. Parecia-lhe vagamente existir profissões que apelavam, de uma forma ou de outra, para as duas facetas do problema vocacional. Parecia-lhe estar face a um ofício to care e, como tal, tributário de uma grande adesão por parte do executante. Ora, ele considerava-se um artífice – gostaria de ser técnico!
Eis pois o problema, na sua génese e na sua profundidade: o jovem António não passava de um místico! Não passava de um inveterado sonhador! Então ele não via que seria necessário muito mais? Então ele não percebia que era preciso, por exemplo, saber-estar, que era preciso saber-ser,que era preciso saber-fazer?...
Decididamente, António capitulava na sua orientação profissional! O caso afigurava-se-lhe, de resto, extremamente difícil: durante muito anos entrincheirado nas doutrinas de Nietzsche e de Schopenhauer, alimentado pelas ideias existencialistas de Sartre, animado por um racionalismo a toda a prova, não lhe era, de facto, fácil dissecar o problema sob os mais variados ângulos e perspectivas.
Hesitação? Pusilanimidade? Problema circunstancial? Mas qual problema? O jovem estudante deveria, isso sim, arranjar as suas coisas, reestruturar melhor o seu pensamento na matéria e não hesitar. Então não era, apesar de tudo, um trabalho digno? Não se tratava, de facto, de uma função que se revestia de um certo relevo social? Não gozava, a actividade docente, de um certo reconhecimento público no mundo contemporâneo? Que projecto de vida teria ele, em alternativa? Mas que tipo de homem era ele, no fundo?
Nem ele sabia muito bem. Tinha, porém, a sensação de que não poderia abandonar, assim, de um momento para o outro, a sua vida continental. Simplesmente não podia! O homem não podia declinar, de um momento para o outro, os compromissos que havia assumido há alguns anos a esta parte. Honestamente, ele não podia abandonar a sua mãe que, à data, contava já 72 Primaveras! Não! Seria, com efeito, legítimo enjeitar a idosa? Poderia, na realidade, deixá-la enferma, só, desamparada, em suma, seria legítimo deixá-la entregue a si própria e como que em moratória dos seus próprios caprichos? Não! Nã, não era possível!...Dir-se-ia que António era o homem mais o factor aleatório, neste caso, a circunstância de ter uma mãe que lhe inspirava cuidados, ter uma mãe que precisava da sua presença e da sua companhia e da sua compaixão...
E depois, porquê precipitar a sua carreira académica para perseguir, em terras longínquas e instáveis, uma ideia acerca da qual não tinha ainda grandes certezas? Porquê abreviar a estrada quando o caminho, a vereda estreita, ainda não havia terminado? Porquê? Seria ele, no fundo, um materialista em embrião, como tantos outros da sua idade? Seria ele um materialista que se escondia por detrás de uma filosofia mal dissimulada de desprendimento, de generosidade, de humanismo? Seria ele o protótipo do burguês envergonhado que se barricava atrás de um sentimento de culpa mal digerido?
Mas que sabemos nós de nós próprios? Que certezas possuímos nós acerca das coisas mais elementares que nos animam? Que sabemos nós acerca dos sentimentos que nos afligem, das ânsias que nos flagelam o espírito, dos pressentimentos que nos assaltam? Em suma, que explicação temos nós para justificar determinados actos dos quais todavia nos envergonhamos e nos quais nãos nos reconhecemos? Balelas! Aldrabices! Embustes! Vamos adquirindo mutatis mutandis, isso sim, um conjunto mais ou menos vasto de mecanismos de defesa, vamos aperfeiçoando, isso sim, as nossas estratégias de justificação comportamental e, desse modo, vamos iludindo as nossas constrições vãs, de resto, ao preço de certezas magras e de mínguas.
O António era, todo ele, uma incógnita, o seu futuro afigurava-se-lhe sombrio, o caminho inóspito, o resultado incerto. Tinha, todavia, uma certeza: não iria para os Açores. Não iria abandonar à sua sorte aqueles que mais dele precisavam. Não podia. E não foi. Hipotecou-se provavelmente o professor. Salvou-se contudo o homem. Mas a dúvida remanescente, essa, ficou no ar. Encheu o café. Invadiu o espaço. Pairou por todo o universo.
in Histórias de Professores
Naquela manhã, António levantara-se cedo, como era de resto seu timbre. Sentia no peito uma vontade férrea e indomável de lutar por uma vida diferente, quiçá uma vida melhor. Ah! Curioso! Uma vida melhor!... E em que sentido? E como? E para quê?... E para quem?...
O que ele, no fundo, chamava vida aparentava-se, mais ou menos, a um somatório de pequenas humilhações, a um punhado de pequenas grandes desilusões. Oh sim! A existência, a sua, neste momento conturbado do seu percurso, não tinha substância, não fazia qualquer sentido, mais não era do que um conjunto de dias que desenrolavam cronológica e penosamente uns atrás dos outros – o que, tudo somado, perfazia uns miseráveis 25 anos!. Em suma, o homem tinha a sensação de que, apesar da sua juventude, apesar do fulgor dos seus anos, já era velho, vetusto, fora do prazo de validade. Sentia-se, apesar de jovem, incompreensivelmente velho e esfalfado antes do tempo, antes de ter sido usado pelas malhas do destino!…
Não obstante este turbilhão de sentimentos que o refreava e, ao mesmo tempo, o impelia, António sonhava ainda. E como ele sonhava, deus meu!... Sonhava com um amanhã prenhe de esperança, com uma carreira de sucesso, com uma família – a sua. Sonhava, em última análise, com coisas tão simples e banais, como a maior parte dos jovens da sua idade. E era justamente isso que o fazia viver, era isso mesmo que o fazia levantar-se a cada manhã. E fazia-o com o mesmo querer e com a mesma confiança que o haviam abandonado na véspera, fazia-o com o mesmo espírito combativo que o havia traído horas antes. Convenhamos! As almas generosas têm isto de particular que não levam a sério o sofrimento superveniente do passado: elas projectam-se de forma mais ou menos mística num amanhã incerto e acreditam piamente que o esforço valerá porventura a pena. E é por isso que vivem. E é por isso que lutam e enduram. O António, ele, possuía ainda, no seu mais íntimo reduto, a esperança de vir, um dia, a ser feliz.
Já na rua, o jovem sentiu-se súbita e estranhamente só. Sentiu-se órfão de pai. Sentiu-se órfão do mundo. Sentiu-se órfão de si próprio. Mas, o que noutra pessoa qualquer, seria um motivo para desistir da pugna, nele, o facto constituía mais uma razão para se empertigar, acrescentava mais um motivo para se entregar à luta. Certo. Tratava-se de uma luta desigual, de uma luta injusta que ele travava contra os outros e consigo próprio, mas não havia opção. O caminho era por ali. O caminho, esse, estaria por sua própria conta e risco, e António tê-lo-ia de subir a pulso, isto é, as dificuldades, tê-las-ia de desbravar sozinho e sem qualquer ajuda de terceiros –como todos nós.
Claro que, para a maioria dos colegas e amigos de curso, o projecto de vida, o projecto de vida deles, apresentava-se, à partida, perfeitamente linear, era aparentemente fácil de levar a cabo, obedecia, por assim dizer, a uma formatação prévia dos dados geneticamente herdados: concluiriam, por certo, uma formação superior no tempo previsto para o efeito, iriam certamente gozar a lua-de-mel para paragens longínquas e exóticas, segundo aliás os caprichos insolentes de cada um dos nubentes e, regressados, encontrariam, por certo, o seu espaço novo em folha, quer dizer, um lar arquitectado na sua retaguarda, uma casa comprada segundo a sensibilidade especiosa dos recém-casados, quando não dos pais, e, à entrada do grande salão de visitas, em grande plano, deparar-se-iam com o certificado de curso que, entretanto, os seus pais, sempre dados a este tipo de coisas, já teriam ido requerer à faculdade contra o pagamento dos respectivos emolumentos. Assim seria! Ao jovem casal, só restaria resolver o problema das gerações vindouras, de cuja matéria se ocupariam em tempo útil, até porque importaria perpetuar os genes, o nome de família, o património. Sim! Seria de suma importância, desde já, preparar eficazmente a passagem de testemunho que, dentro do bom espírito burguês, se resumiria, na sua essência, à tramitação legal dos bens de família, que, entretanto, haveriam de acumular…
António discorria acerca deste estado de coisas quando entrou finalmente no estabelecimento. Pediu um café e sentou-se numa das mesas, lá ao fundo. Depois, pegou maquinalmente no jornal diário e, facto curioso, deparou com um anúncio que o despertou da letargia. Sim. Ele tinha ouvido, desde há alguns a esta parte, vagos rumores, remorques inconsistentes, segundo os quais os Açores se deparavam com uma enorme carência de professores, e, hoje, quase que por acaso, tinha a prova disso mesmo nas mãos, tinha o Jornal de Notícias sobre a mesa, aberto na página dos classificados, em que se podia ler, em letras garrafais:
PRECISA-SE
PROFESSORES
POVOAÇÃO (S. MIGUEL)
e conseguia ler, em letras muito miudinhas que os candidatos viriam a receber, em caso de aceitação, ajudas de custo, acrescidas de um subsídio de deslocação mensal mais casa paga pela respectiva Associação de Pais.
O homem hesitava. Estava no 2.º Ano da Universidade, no velho Campo Alegre, n.º 1455 e pensava seriamente em interromper, por tempo indeterminado, os seus estudos para, desse modo, poder abraçar uma carreira profissional que, de resto, se antevia promissora. Claro que, no imediato, o jovem, agora com 25 anos, iria perder bastante. Pertencia aos quadros dos TLP, auferia de um salário um pouco acima da média nacional, usufruía de um estatuto de estatuto-trabalhador que lhe permitia gerir parcimoniosamente a sua carreira académica, em suma, António vacilava perante uma dúvida indecifrável.
Com efeito, a decisão não era de fácil avaliação. Teria ele, por exemplo, vocação para o ensino? Sentir-se-ia ele dotado de um espírito missionário, tal como parece requerer a tarefa? Não. Ele não se sentia particularmente tocado por um espírito de missão. Aliás, a missão, se ela existia, só servia para tolher os espíritos e toldar a luz da razão; logo, ela, a missão, estaria ao serviço da mediocridade e nunca da excelência. Ora, António era – poder-se-ia asseverar – uma pessoa capaz de se adaptar a tudo, era dotado de uma grande plasticidade, mas nunca seria capaz, por exemplo, de enveredar por uma profissão que comprometesse as suas mais profundas convicções. Nunca! Não! Ele não se via, em caso algum, a abraçar uma vida profissional assente na exegese, assente nos princípios do sacerdócio – e isto diz tudo sobre a sua probidade, ou melhor, é afirmar, sem qualquer tibieza, a sua fidelidade a si próprio. Não! Ele não seria, em caso algum, o tartufo dos tempos modernos. Ele era autêntico. Era genuíno. Era honesto.
O estudante, por vezes, não compreendia estas interrogações, de resto, tão mesquinhas. Não conseguia, sobretudo, explicar este gosto tão acicatado pela análise caleidoscópica. Não conseguia justificar este romantismo avant la lettre na altura de tomar decisões importantes. Mas o que ele, sobretudo, sentia, era uma dificuldade dificuldade em separar a parte de missão que supostamente existia no professor, e, correlativamente, a parte técnico-profissional que lhe estaria inerente, quer dizer, que lhe seria, porventura, intrínseca…
O jovem não sabia ao certo. Parecia-lhe vagamente existir profissões que apelavam, de uma forma ou de outra, para as duas facetas do problema vocacional. Parecia-lhe estar face a um ofício to care e, como tal, tributário de uma grande adesão por parte do executante. Ora, ele considerava-se um artífice – gostaria de ser técnico!
Eis pois o problema, na sua génese e na sua profundidade: o jovem António não passava de um místico! Não passava de um inveterado sonhador! Então ele não via que seria necessário muito mais? Então ele não percebia que era preciso, por exemplo, saber-estar, que era preciso saber-ser,que era preciso saber-fazer?...
Decididamente, António capitulava na sua orientação profissional! O caso afigurava-se-lhe, de resto, extremamente difícil: durante muito anos entrincheirado nas doutrinas de Nietzsche e de Schopenhauer, alimentado pelas ideias existencialistas de Sartre, animado por um racionalismo a toda a prova, não lhe era, de facto, fácil dissecar o problema sob os mais variados ângulos e perspectivas.
Hesitação? Pusilanimidade? Problema circunstancial? Mas qual problema? O jovem estudante deveria, isso sim, arranjar as suas coisas, reestruturar melhor o seu pensamento na matéria e não hesitar. Então não era, apesar de tudo, um trabalho digno? Não se tratava, de facto, de uma função que se revestia de um certo relevo social? Não gozava, a actividade docente, de um certo reconhecimento público no mundo contemporâneo? Que projecto de vida teria ele, em alternativa? Mas que tipo de homem era ele, no fundo?
Nem ele sabia muito bem. Tinha, porém, a sensação de que não poderia abandonar, assim, de um momento para o outro, a sua vida continental. Simplesmente não podia! O homem não podia declinar, de um momento para o outro, os compromissos que havia assumido há alguns anos a esta parte. Honestamente, ele não podia abandonar a sua mãe que, à data, contava já 72 Primaveras! Não! Seria, com efeito, legítimo enjeitar a idosa? Poderia, na realidade, deixá-la enferma, só, desamparada, em suma, seria legítimo deixá-la entregue a si própria e como que em moratória dos seus próprios caprichos? Não! Nã, não era possível!...Dir-se-ia que António era o homem mais o factor aleatório, neste caso, a circunstância de ter uma mãe que lhe inspirava cuidados, ter uma mãe que precisava da sua presença e da sua companhia e da sua compaixão...
E depois, porquê precipitar a sua carreira académica para perseguir, em terras longínquas e instáveis, uma ideia acerca da qual não tinha ainda grandes certezas? Porquê abreviar a estrada quando o caminho, a vereda estreita, ainda não havia terminado? Porquê? Seria ele, no fundo, um materialista em embrião, como tantos outros da sua idade? Seria ele um materialista que se escondia por detrás de uma filosofia mal dissimulada de desprendimento, de generosidade, de humanismo? Seria ele o protótipo do burguês envergonhado que se barricava atrás de um sentimento de culpa mal digerido?
Mas que sabemos nós de nós próprios? Que certezas possuímos nós acerca das coisas mais elementares que nos animam? Que sabemos nós acerca dos sentimentos que nos afligem, das ânsias que nos flagelam o espírito, dos pressentimentos que nos assaltam? Em suma, que explicação temos nós para justificar determinados actos dos quais todavia nos envergonhamos e nos quais nãos nos reconhecemos? Balelas! Aldrabices! Embustes! Vamos adquirindo mutatis mutandis, isso sim, um conjunto mais ou menos vasto de mecanismos de defesa, vamos aperfeiçoando, isso sim, as nossas estratégias de justificação comportamental e, desse modo, vamos iludindo as nossas constrições vãs, de resto, ao preço de certezas magras e de mínguas.
O António era, todo ele, uma incógnita, o seu futuro afigurava-se-lhe sombrio, o caminho inóspito, o resultado incerto. Tinha, todavia, uma certeza: não iria para os Açores. Não iria abandonar à sua sorte aqueles que mais dele precisavam. Não podia. E não foi. Hipotecou-se provavelmente o professor. Salvou-se contudo o homem. Mas a dúvida remanescente, essa, ficou no ar. Encheu o café. Invadiu o espaço. Pairou por todo o universo.
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