Neste breve excurso, debruçar-me-ei sobre o famigerado se, cujo assunto se prende com questões do género das que se enunciam:
• há – ou não – passividade nas construções com se, seguidas de verbos transitivos directos?
• nota-se – ou não – que o se é uma particula apassivadora?
• existe – ou não – sinonímia entre a construção da Voz Passiva Sintética (VPS) e a da Voz Passiva Analítica (VPA), como o pretende a perspectiva normativa – e normativista?
• o clítico se pode – ou não – ser entendido como um índice de indeterminação do sujeito? O argumento deve – ou não – ser perspectivado como um caso acusativo?
Considere-se, antes de mais, as seguintes frases:
[1] Vendem-se apartamentos
[2] Alugam-se casas
[3] Fazem-se chaves
cujas construções sempre foram tenazmente defendidas pela Gramática Tradicional (GT) como passivas (VPS), isto é, frases, cujo verbo selecciona um argumento (Arg) e uma particular apassivadora – conhecida, na gramática normativa, como se passivo, segundo o esquema sintáctico que se segue:
V + SE + Arg.
Com efeito, tendo em conta que a norma do Português desconhece por completo a concordância verbo - objecto na voz activa, ou, dito por outras palavras, sabendo que cabe invariavelmente ao sujeito desencadear a concordância verbal, tudo parece indicar que este tipo de frases constitua uma variante da voz passiva.
Aliás, é neste sentido que Celso Cunha e Lindley Cintra se pronunciam, quando referem, a este propósito, que:
“Em frases do tipo:
Vendem-se casas.
Compram-se móveis.
consideram-se casas e móveis os sujeitos das formas verbais vendem e compram, razão por que na linguagem cuidada se evita deixar o verbo no singular.” (1984:309)
De resto, as frases [1], [2] e [3], são perfeitamente reversíveis na VPS, tal como a GT defende, especificando, de resto, que a VPA determina a organização lógica e sintáctica da VPS, como se perceberá pelos exemplos [1’], [2’] e [3’]:
[1’] Apartamentos são vendidos
[2’] Casas são alugadas
[3’] Chaves são feitas
Mas a questão é, todavia, bem mais complexa e, parece-me, não basta o sentimento de pudor revelado pelos prestigiados gramáticos dos autores da Nova Gramática do Português Contemporâneo, para afastar os demónios da discordância verbo - objecto, pois que frases como as que se seguem:
[4] Vende-se apartamentos
[5] Aluga-se casas
[6] Faz-se chaves
não levantam quaisquer dúvidas sobre a sua boa formação , ou seja, não se pode dizer, no estado actual da Língua Portuguesa, que elas sejam agramaticais, nem tão-pouco inaceitáveis . E, no entanto, da análise de [4], [5] e [6] depreende-se um conjunto se regras sintácticas que podem ser enunciadas conforme segue:
[Ra] o verbo (1.ª pessoa do singular) não está em concordância com o Arg. (plural);
[Rb] o verbo possui um Arg. (normalmente, um SN);
[Rc] o verbo tem um argumento externo (SU) que não impõe a passividade;
[Rd] o verbo, relativamente ao modelo VPS, não sofre qualquer movimento interno
das quais não se pode engendrar, como no primeiro conjunto, as correlativas passivas:
[4’] * Apartamentos é vendido
[5’] *Casas é alugada
[6’] *Chaves é feita
Face ao exposto, como é que se deve interpretar o clítico (se)? Será, como defende a GT, a ars bene dicendi, uma partícula apassivadora? Ou, antes, um elemento que indetermina a acção do verbo e, como tal, interpretável como uma frase activa, logo portadora de agentividade que se pode glosar como “há alguém que faz x?
Parece-me ser esta a única interpretação possível da construção se, seguida de verbo transitivo directo, pois que a Língua Portuguesa não é, contrariamente ao Latim, uma língua sintética . Na verdade, collis romae (caso genitivo), por exemplo, deu em Português a colina de Roma (grupo preposicional), o que se pode demonstrar recorrendo a outras línguas românicas. Veja-se:
PORTUGUÊS FRANCÊS
[1] Vendem-se apartamentos [1a] On vend des appartements
[2] Alugam-se casas2a [2a]On loue des maisons
[3] Fazem-se chaves [3a] On fait des clés
[4] Vende-se apartamentos [4a] On vend des appartements
[5] Aluga-se casas [5a] On loue des maisons
[6] Faz-se chaves [6a] On fait des clés
Face ao que acaba de ser exposto, parece-me que a variante não padronizada da língua (discordância V - Arg.), longe de ser “uma das mais lastimáveis nódoas que podem macular a nossa língua” (Lobo, 1939:192), mais não é do que a constatação de que as construções com se junto dos verbos transitivos directos deve ser perspectivada como um caso de voz activa com sujeito indeterminado, e, como tal, o Arg. deve ser entendido, não como preconiza Cunha, quando refere que:
“Na língua moderna evita-se tal prática [a do o se passivo ]. Daí soar-nos artificial uma construção como a seguinte:
Este verbo, em nossa língua, nunca se usou pelos escritores vernáculos senão como equivalente de amar” (1984:308)
mas como a indeterminação do SU pelo viés do clítico (se)
Daqui se conclui que o se está a perder a função de pronome apassivador e que se está a transformar num elemento indeterminado da classe de SU; que, por outro lado, o sintagma, normalmente, um SN (sintagma nominal) está a acolher o caso acusativo e, portanto, a perder a posição de sujeito sintáctico, glosado pela forma seguinte.
“há alguém que [verbo] alguma coisa”
Desta forma, são as formas do verbo (vender, alugar, trocar, comprar, etc.) que ficam em primeiro plano, ao passo que o clítico indetermina, pela vontade do locutor, o verdadeiro sujeito do processo verbal (transacção) que, desse modo, oculta a identidade da instância enunciativa que a pragmática explica e requer. Dito de outro modo: importa mais o processo do que o SU. Até porque a casa – lembram-se? – é para alugar, para vender, para trocar (noção de agentividade), e a pragmática (grosso modo, a linguagem em situação), essa, não poderá, em caso algum, aconselhar a afixação de um eventual cartaz em que se anunciaria:
[7] ? A casa é alugada
A menos que o proprietário não se queira desfazer do objecto. Mas, aí, correia, por certo, sérios riscos de ser acusado de insanidade mental, tal como refere Said Ali:
“[A]luga-se esta casa e esta casa é alugada exprimem dois pensamentos, differentes na forma e no sentido. Ha um meio muito simples de verificar isto. Colloque-se na frente de um predio um escripto com a primeira das frases, na frente de outro ponha-se o escripto contendo os dizeres esta casa é alugada. Os pretendentes encaminham-se unicamente para uma das casas, convencidos de que a outra já está habitada. O annuncio desta parecerá superfluo, interessando apenas aos supostos moradores, que talvez queiram significar não serem elles os proprietarios. Se o dono do predio completar, no sentido hypergrammatical, a sua taboleta deste modo: esta casa é alugada por alguém, não se perceberá a necessidade da declaração e os transeuntes desconfiarão da sanidade mental de quem tal escripto expõe ao público” (1908:98).
Nós, conscientes da importância enunciativo-pragmática, também! Pudera! Cem anos depois…
© Manuel Fontão
Sem comentários:
Enviar um comentário