2013/06/16

As contradições de Passos Coelho e a síndroma de Frei Tomás [Torquemada]


     Antes da sua chegada ao poder, o homem e a sua metade lunar escreveram um livro – lembram-se? – em que usaram, inclusive, as redes sociais, nomeadamente o Twitter, para apresentar, então, as suas maravilhosas ideias ao país. E, entre tantas atoardas, tão loucas quanto a sua louca desventura, sabem o que o homem dizia, por certo… Pois! Que era necessário dizer basta! ao engenhoso Eng. Sócrates e adiantava mesmo que a austeridade não podia incidir sempre no aumento de impostos [sic]. Oh claro! Mas que grande homem se perfilava, então, na abóbada celeste de um país já à deriva! Que idolatra se vislumbrava, pois, num horizonte carregado de nuvens espessas e ameaçadoras! Mas vejamos! Seria um novo D. Sebastião, arquétipo sempre muito útil nestas e noutras circunstâncias? Seria uma versão renovada e arrojada do mito napoleónico, eternamente gravado na nossa memória coletiva, que viria, finalmente, salvar um reino (agora travestido em nação republicana e laica…), capaz de traduzir em vitórias a nossa sempiterna humilhação universal? Seria, enfim, um eventual doutor Fausto, que, não obstante ter perigosas ligações com o inimigo, quer dizer, apesar de ter um pacto de sangue com o diabo, teria, malgré tout, a capacidade de galvanizar os seus concidadãos, ou, para utilizar a linguagem cavaquesa, teria o engenho e a arte de motivar os “cidadões” [cf. discurso integral do 10 de junho de 2013, versão integral – que os media, curiosamente – ou não –, ocultaram…]?

     Um pouco mais tarde, e ainda antes de vencer as eleições, o agora primeiro-ministro (outrora candidato a político, outrora gestor de sociedades obscuras, outrora porta-voz de uma geração bom chique, bom género e bon vivant…) havia recorrido ao Twitter como arma política para dar expressão a algumas críticas, aliás, pertinentes e fazer algumas promessas, igualmente relevantes, tendo explicado, em abril de 2011, com muita sobriedade, com palavras mui preclaras que podia garantir que não seria necessário despedir pessoas para sanear o sistema português (cf. imagem). Que dizia mais, então, o imberbe candidato? Ora, afirmava, presumo que altaneiro e arrogante, que ele, Pedro Passos Coelho, estava em medida de garantir que não seria preciso cortar mais salários  (cf. imagem correspondente). De repente, fazia-se luz em muitos espíritos metódicos, maniqueístas e retrógrados por essas terras fora. Respirava-se de alívio. Descobrira-se, finalmente, um tipo vindo não se sabe ao certo de onde (mas também que interesse tem conhecermos as origens das pessoas, sabermos se elas são toxicodependentes ou se são cleptomaníacos, se são maçónicos ou jacobinos?...), e, coisa curiosa e fascinante, o homem dizia as palavras certas, alumiava o caminho sombrio e os portugueses, pelo viés do ato essencial, qual cajado nas mãos do eleitor, matava dois coelhos de uma só assentada: um, que haveria de se exilar em Paris, cidade aliás propícia para exercitar a meditação zen e, outro, que dava pelo nome de défice, ou, se preferirmos, de dívida soberana, porquanto esta velha Europa, quando não tem problemas para resolver, como por exemplo, os países do Corno de África, inventa-os das unhas dos pés. Ou da raiz dos cabelos. Pois bem! Tínhamos homem - e não era daqueles que, como tantos houve ao longo da nossa história, nos queria vender banha da cobra. Não era daqueles que nos queria ludibriar pelas portas travessas do gesto supremo. Não! Com este, tudo seria diferente - que quem assim fala só pode ser gente séria e honesta!...
  
     Com efeito, já exauridos por uma carga fiscal perfeitamente esmagadora e insana, muitos eleitores, porventura, indecisos, viram, no homem e na sua metade lunar, um político capaz de inverter o quadro social e económico do país. Viram, naquela figura angélica a fazer lembrar o Saint-Just da Revolução francesa, the right man for the right place. Nada que, nesta matéria, possa ser digno de censura e de espanto, tanto mais que os povos, pelo menos, os ocidentais, aliás, em tudo o resto tão cultos e sofisticados, têm, todavia, isto de muito particular: basta acenar-lhes com um rol de projetos mais ou menos bem ou mal-intencionados, espécie de naco de queijo colocado na linha do seu horizonte existencial – e pronto! Convocados para a sagração plena (o que só acontece de quatro em quatro em anos, pelo menos no nosso burgo…), lá estão eles, os povos, a ratificar as mais obscuras ideias de um qualquer obscuro candidato a primeiro-ministro. Chamados às urnas, momento supremo mas único das nossas benquistas democracias, os portugueses, independentemente do género, do credo e da filiação partidária, falaram, que é como quem diz, apuseram, após longa reflexão, uma cruzinha do lado de fora do seu desejo secreto. Havia, na altura, vários galos para o mesmo poleiro, uns mais magalas que outros. Pois bem! Ganhou, como se recordarão, um magalinha, na circunstância, o twitteiro da nova geração. Pudera! Um homem aberto aos novos mundos da comunicação global, um homem apreciador das dinâmicas do mundo contemporâneo, um homem que fala URBI ET ORBI! Mas que diferença, senhores!...
     Poder-se-ia, aqui, levantar a questão da ingenuidade política dos povos, da sua completa incompreensão para com os intrincados jogos de bastidores, da sua falta de cultura relativamente ao discurso político, etc. Poder-se-ia, mesmo, dar o benefício ao recém-eleito, que, uma vez chegado ao poleiro, se teria confrontado com a fragilidade das contas do velho galinheiro, tanto mais que, perante um país objeto de intervenção externa, e, de resto, depenado por um défice galopante, o recurso ao discurso centrado na austeridade faria todo o sentido, ou melhor, parecia, mesmo aos olhos do leigo, algo de incontornável.
     Mas eis a questão central: um orador que, intencionalmente, alinha a sua estratégia discursiva por um conjunto de argumentos deste jaez não pode ficar calado perante o enorme desfasamento entre o que disse e o que fez – e continua a fazer. A não ser que nos movamos numa lógica assente numa ausência absoluta de princípios e de valores, como parece ser o caso. A não ser que o político faça tabula rasa das noções de coerência interna e de boa-fé, conditio sine qua non da sua credibilidade e do seu bom nome. Que, note-se, aquilo que separa um político digno desse nome de um qualquer charlatão de rua é, muito justamente, o grau de adequação da sua palavra aos seus atos - e isto porque a palavra nos compromete, não apenas perante os outros, mas, sobretudo, perante nós próprios, razão pela qual todos percebemos a figura de Frei Tomás como um palrador, ou seja, como uma espécie de tribuno desprovido do argumento de exemplaridade. É que, nesta como noutras matérias, à mulher de César não basta parecer séria, também tem de o parecer, sendo que o contrário é igualmente verdade, pois que também terá de o ser (séria) e não apenas parecer - isto para significar que o ser e o parecer têm de ar de mãos dadas e ao sabor dos ventos - e não segundo uns quantos interesses de paróquia…

     Certo, o homem colocou, a seu tempo, no Twitter uma espécie de cláusula de salvaguarda, a saber, que não podia prometer que não houvesse aumento de impostos e acrescentava que não ia prometer coisas que não tinha a consciência de poder cumprir. Assim é que é! Fica-lhe bem este toque de espontaneidade na sua triste história conversacional, assim como bem lhe assenta a confissão, igualmente espontânea, segundo a qual impostos e salários foram sacrificados para pagar juros demasiado altos. Quem assim procedeu não pensou no país mas em salvar a própria pele [sic]. Bonito, com efeito! Um homem tão honesto, tão imbuído de princípios universais, tão de acordo com os anseios e as angústias do seu povo - ainda que seja português -, desde sempre sacrificado aos políticos da sua praça, em suma, um homem desta estirpe só poderia acabar na sagração definitiva – o nosso Pedro Passos Coelho acabaria por ser eleito o Primeiro-ministro de Portugal, dos Algarves (a braços com a questão das SCUT) e de Além-mar (que, para lá do oceano, estão as ex-colónias, meninas adolescentes que, a certa altura, decidiram revoltar-se contra um pai mais ou menos senil e perverso, ou, se quisermos, contra uma mãe-pátria devassa, porquanto andou a fazer comércio com gente mui bárbora e hostil...).

     Posto isto, importa confrontar o nosso Pedrito de Portugal, eleito (demo)craticamente pelo conjunto dos seus concidadãos, com o seu discurso prévio – e não coloco em causa a sua legitimidade, apesar de reconhecer a necessidade de se coligar com o inimigo, tal como Fausto precisou de verter o seu próprio sangue à mesa das negociações com o demo – que o demo, o crato, esse, coitado, viria a seguir… (e, por certo, arrepender-se-á, num futuro próximo, de ter desbaratado em poucos meses o capital que havia granjeado durante longos e árduos anos).

     Mas vejamos, pois!
    O senhor Pedro Passos Coelho e o seu governo revelaram-se, até ao momento, incapazes de unir um país que, em substância, permanece refém dos grandes interesses instalados, nomeadamente, dos contratos paralelos, das parcerias suspeitas e das apostas especulativas lançadas sobre produtos financeiros tóxicos; 
     O senhor Pedro Passos Coelho e o seu séquito manifestaram, até à data, uma absoluta incapacidade de catapultar um país que, dia após dia, ganha uma maior consciência cívica, neste sentido que os cidadãos sentem, na sua própria carne, que, afinal, os sacrifícios são, invariavelmente, dirigidos para as classes sociais mais desprotegidas, e, como tal, passíveis de um maior apoio em tempos difíceis; 
     O senhor Pedro Passos Coelho e a sua corja governamental denunciaram - e continuam a denunciar - um enorme défice democrático, pois que teimam em não acatar a lei fundamental do país, teimam em desafiar sub-repticiamente os órgãos democraticamente instituídos, disparando, na circunstância, em todas as direções quando as contingências lhes são, de uma forma ou de outra, adversas; 
     O Senhor Pedro Passos Coelho e o seu cortejo de acólitos assumem uma atitude comportamental marcadamente (ab)reativa e revanchista, pois mais não fazem do que decalcar os comportamentos birrentos e ressabiados, práticas, porventura, supervenientes de uma infância algures perdida nas trevas do tempo – mas que, hélas!, coloca em causa o modelo educacional dos respetivos progenitores; 
      O Senhor Pedro Passos Coelho, como responsável mor de um governo desnorteado, terá de responder, em sede própria, isto é, em sede jurídica, pela desagregação de um país outrora pacífico, assim como terá de justificar os danos patrimoniais e morais causados aos seus concidadãos e fundamentar, nos termos da lei, o desrespeito que sente pelo funcionamento do próprio sistema democrático – de que, todavia, faz lamentavelmente parte; 
      O Senhor Pedro Passos Coelho, como chefe do governo, deve ser traduzido em justiça pela forma iníqua como tem dirigido os destinos do país, em particular, terá de explicar por que razão sacrifica o suor do seu povo para o verter, tal como os mercenários, ao grande capital, nomeadamente, aos grandes grupos económicos e aos banqueiros – que, na sua alegre inconsciência, continuam a agredir o cidadão anónimo com as suas barbaridades e obscenidades; 
      O Senhor Pedro Passos Coelho, como primeiro responsável destas políticas desastrosas, deverá explicar, a quem de direito, por que é que desbaratou o capital de confiança sistémico, denunciando, aliás, de forma abusiva e unilateral, um contrato social tacitamente assinado entre os pensionistas/reformados e o próprio estado central, porquanto as receitas retidas durante anos a fio e no decurso das respetivas carreiras contributivas não consubstanciam – como não deverão! – uma eventual receita exclusiva de um qualquer estado, primeiro, porque as contínuas mensalidades foram efetuadas no estrito cumprimento da lei e diretamente extraídas das respetivas folhas de salário (sem o que os contribuintes seriam julgados por resistência à legislação vigente e olimpicamente executados pela Agência Nacional de Impostos…), e, depois, porque se entende que tais verbas constituíam – como constituem – um depósito pecuniário de que o estado central foi – e é – fiel depositário; 
     O Senhor Pedro Passos Coelho, como mentor desta política de terra queimada, deve, sobretudo, interrogar-se sobre a real eficácia do seu discurso político, o qual tem sido, até ao momento, verdadeiramente contraproducente, quando aquilo que se pede a um bom político é, justamente, o inverso, i.e., que convença o auditório, que crie sinergias à sua volta, que envolva os seus eleitores, pelo que se terá de se concluir que o homem se tem revelado, definitivamente, um péssimo orador, a exemplo de Frei Tomás – que, como soe dizer, prega muito bem, porquanto não se possa olhar para o que ele faz…;
      O Senhor Pedro Passos Coelho, o homem em carne e osso, deve marcar, com a urgência possível, um encontro (em privado como convém…) com o Senhor Pedro Passos Coelho, o homem de papel e político de profissão, e, na refrega, caneta em punho, ata fidedigna, confrontá-lo com a incoerência discursiva que vai de um a outro, sob pena de o segundo - ou o primeiro? - ser acusado de mentiroso compulsivo. Que não o é, convenhamos! Trata-se, antes, de alguém que vendeu a sua alma, tal como Fausto, ao demo – restando-lhe, apenas, a sua dimensão autocrática.
     Em suma, o senhor Pedro Passos Coelho não é, decerto, um homem naturalmente mau, embora não saibamos se é de boa cepa, e, nesta eterna dúvida mais ou menos cartesiana, creio, muito sinceramente, que se trata de um homem como todos nós: assim-assim. Com esta pequena grande diferença, a saber, que os da estirpe de Joane não ganham o céu, tampouco conquistam um lugar no Inferno (lugar comum mais ou menos equivalente ao seu sair da zona de conforto) e o limbo, esse, parece que, segundo a nova cosmogonia deixou de existir. No entanto, é aí que o homem se parece mover. Até quando? Ora, até que o soporífero pater familias acorde da sua longa letargia...
© Manuel Fontão

Sem comentários: