2012/07/15

O Quadro Europeu Comum de Referência



1. Apresentação do Quadro Europeu Comum de Referência

Numa sociedade cada vez mais multilingue, os estados-membros da Europa atual não têm sonegado esforços, para, em conjunto, encontrar plataformas de entendimento com vista à criação de políticas linguísticas tendencialmente uniformes e, por certo, mais justas. 

É, pois neste contexto sociopolítico – e sociocultural – que vimos surgir, no seguimento de propostas do Conselho Europeu para o ensino das línguas, o Quadro Europeu Comum de Referência [QECR], uma obra elaborada pelo Grupo de Projeto Aprendizagem das Línguas e Cidadania Europeia. Com efeito, nascido no âmbito do Projeto Políticas Linguísticas para uma Europa Multilingue e Multicultural, o QECR procura, antes de mais, orientar todos aqueles que estejam envolvidos, direta ou indiretamente, no processo de ensino/aprendizagem de idiomas no espaço europeu, com particular destaque para professores, autores de materiais didáticos, examinadores, centros de certificação e avaliação, formadores e agentes que tutelares da educação. 

Assim perspetivado, o QECR apresenta-se como um instrumento que fornece uma base comum para a elaboração de programas de línguas, linhas de orientação curriculares, exames, manuais (2001:19), etc., o que consubstancia uma maior homogeneização, por exemplo, dos processos de equivalência, pois que, de acordo com o conteúdo do referido projeto, adoptar-se-ão os mesmos níveis de referência num espaço transnacional, agilizando, por conseguinte, o reconhecimento recíproco de qualificações obtidas em diferentes contextos de aprendizagem (idem: 19). Não se julgue, porém, que esta obra se apresenta como um instrumento normativo, mas, antes, como um documento orientador. Com efeito, [s]ão levantadas questões, mas não são dadas respostas (idem: 11). Como Não poderia… 



2. Linhas orientadoras do QECR

Em termos de metodologias, o QECR defende o recurso a um modelo eclético, na medida em que as características do público-alvo, as suas necessidades, os seus objetivos e as suas expectativas de aprendizagem poderão valorizar determinadas práticas pedagógicas pertencentes a metodologias diversas. De resto, o utilizador constatará, ao explorar esta obra de referência, que é dada uma importância fulcral à competência comunicativa, pois que é pelo viés desse skill que é possível conduzir o processo de ensino/aprendizagem a uma maior mobilidade e a um maior intercâmbio, favorece[ndo] a compreensão recíproca e reforça[ndo] a colaboração. Significa isto que o QECR se esforça, parece-me, em perspetivar o ensino/aprendizagem de línguas numa linha de atuação (didática) que ultrapassa, em muito, as questões meramente gramaticais do ensino tradicional e que tenta sub-repticiamente responder a questões tão prementes no mundo hodierno como, por exemplo (a) para que aprendemos, afinal, outras línguas? (b) em que condições concretas o fazemos? (c) quais são os elementos propulsores desta necessidade? e, por fim, (d) como é que os didacticistas devem encara o (novo) aprendente?

Ora, de acordo com os pressupostos teoréticos do QECR, deveremos encarar o aprendente como alguém que desempenha diversos papéis em sociedade, estando, por isso, sujeito a uma enorme variedade de situações comunicativas supervenientes do seu quotidiano e, nesse ótica, não faz qualquer sentido forçar o aluno/formando a dominar um léxico estritamente formal, quando terá de fazer face a situações de natureza bem mais informal e prosaica; dito por outras palavras, constitui uma tarefa pedagogicamente contraproducente treinar o aprendente, recorrendo apenas a situações rígidas, não obstante o excesso de informalidade carreada para a cena didática se poder revelar, aqui e ali, uma estratégia perigosa, tendo em vista o perfil de saída (os seus objetivos profissionais).

Face ao exposto, é óbvio concluir-se que cabe a cada pedagogo e a cada gestor de currículo optar pela justa mesura. E, tal como este modelo sugere, fazer ressurgir a individualidade do aluno/formando, valorizando-o pelo uso da língua que faz e, supostamente, através do conjunto variado de competências de que dispõe e/ou que está disposto a desenvolver en cours de route


3. Níveis de Referência [1]

Os níveis de referência descritos no QECR (e, aqui, sumariamente transcritos), são os que se seguem [2001: 49]:


 
Tal facto implica, logo que o processo de ensino/aprendizagem comece, isto é, logo que se iniciem os primeiros contactos com os alunos/ formandos, a necessidade de se certificar acerca do nível em que se encontram – daí a justeza da aplicação de um teste diagnóstico (ou de parâmetros de diagnose similares), cujos resultados, conseguidos quanto antes, serão determinantes para uma boa adequação dos conteúdos aos aprendentes.

Todavia, tal não deverá ainda dispensar uma negociação com os discentes acerca de uma série de decisões relativamente às práticas pedagógico/didácticas. Aliás, em níveis mais avançados, é de toda a utilidade averiguar junto dos alunos qual o seu relacionamento com a língua, por que motivo a quer(em) aprender, que cursos já terão eventualmente frequentado, etc., até porque os alunos/formandos apreciam bastante o facto de se estar a tomar em consideração a sua experiência na aprendizagem, as suas motivações e os seus próprios objetivos pessoais. Além disso, estas informações serão particularmente preciosas, sobretudo, quando possuem alguma experiência negativa relativamente, por exemplo, às metodologias carreadas, aos recursos materiais (que poderiam ser muito pouco variados, de duvidosa qualidade, ou simplesmente não corresponder às suas expectativas…). Assim, e como é óbvio, deverá existir uma programação dos conteúdos temáticos, linguísticos e comunicativos a explorar, podendo-se, a posteriori, alterar alguns dados, em função das características do público-alvo.

De resto, não será inútil acrescentar que a referida programação deverá estar acessível, não apenas aos docentes, mas também aos aprendentes, que, desse modo, têm a oportunidade de avaliar a sua qualidade, a sua validade e a sua pertinência curriculares. Claro que tal facto não implica que, en cours de route não possam surgir alterações à planificação, i. e., ao que fora previsto a montante, tanto mais que a atividade de planificação se deve revestir de um caráter orientador - e não constituir, em caso algum, um algoritmo de tarefas a executar de forma mecânica…



4. Operacionalização do programa

Todo e qualquer programa constitui, de per se, uma carta de intenções e reúne, grosso modo, um leque de linhas orientadoras que, pela sua abrangência e generalidade, são, a maioria parte das vezes, de difícil execução. Urge, pois, passar ao plano do concreto, sem prejuízo do texto diretor, o que significa que o professor planificador terá de operacionalizar o texto programático. Eis, pois, algumas regras gerais, as quais não pretendem, como é evidente, erigir-se em qualquer receita (que não há!...), mas que podem ajudar a orientar a tarefa de planificação propriamente dita:


PRIMEIRA FASE.

1.º identificação das necessidades do grupo/turma:
a) num nível mais geral, partir daquilo que seria habitual demonstrar num determinado nível de proficiência;
b) proceder a uma avaliação de diagnóstico, testando as diversas competências (orais e escritas).

2.º definição das competências/ objetivos: 
a) gerais (estabelecer pontes com outras áreas de conhecimento) e específicas; 
b) não descurar os objetivos particulares dos aprendentes no processo de aprendizagem, promovendo
assim uma melhor adequação do curso, centrado nas suas necessidades. 

3.º seleção de conteúdos: 
a) temáticos e culturais; 
b) comunicativos; 
c) linguísticos. 

4.º selecção de recursos materiais: 
a) evitar o recurso exclusivo ao manual; 
b) evitar o recurso excessivo a documentos forjados, mas promovendo, antes, o acesso a documentos
autênticos, isto é, aquelas que emanam do quotidiano; 
c) ir além dos documentos escritos, recorrendo a documentos iconográficos (por exemplo, cartazes, 
posters, imagens de slogans publicitários...), áudio, audiovisuais, em suporte digital... 

5.º delineação da(s) estratégias/atividades de trabalho: 
a) selecionar as tarefas pensadas de acordo com os conteúdos que se pretende explorar;
b) não perder de vista a sequencialização lógica das opções escolhidas (de modo a que o próprio
aprendente não se sinta desorientado no seu percurso de aprendizagem); 
c) diversificar as tarefas exploratórias (o facto de se usar de um esquema mais monótono ou mais variado
dependerá das características do público-alvo, o qual poderá demonstrar uma maior apetência por modelos
mais ecléticos ou, contrariamente, mais conservadores/ tradicionais). 

6.º tarefas de avaliação 
a) multiplicar os momentos avaliativos (no início, será essencial para que se determine o nível de proficiência
do aprendente; a meio do curso, as tarefas avaliativas – em esquema de auto ou hetero-avaliação – poderão
identificar aspetos a desenvolver de modo mais aprofundado e até acrescentar outros pontos a explorar; no
final do curso, por um lado, a tarefa apresentar-se-á como um balanço final das competências que terão
sido desenvolvidas, além de poder identificar, por outro, alguns pontos críticos nas opções metodológicas
do professor).



5. Recursos: uma falsa questão



É verdade que o mercado continua a oferecer poucos materiais didáticos diversificados e aqueles que existem, sobretudo no âmbito do PLE, parecem-me excessivamente gramaticalizados, o que reflete uma visão quase obsessiva pela norma. Com efeito, afigura-se-me inverosímil que estes materiais preparem adequadamente o indivíduo para a vida ativa, sobretudo se tivermos em linha de conta que, no quotidiano, é importante interagirmos.

Assim, e face a esta carência de propósitos, terá de ser o professor a tomar a iniciativa de os elaborar. Como? Por exemplo, se tomarmos os níveis de proficiência descritos no QECR, e mesmo se considerarmos o tipo de conteúdos patente em cursos de caráter geral, em termos linguísticos, importará valorizar o recurso a estruturas lexicais recorrentes na área em causa; já em termos comunicativos, destacar-se-ão as atividades que promovam as situações para as quais o aprendente deverá estar apto para interagir, seja a um nível formal ou informal. Para esse efeito, poder-se-á recorrer a toda uma panóplia de documentos, tais como, jornais, publicações da especialidade, e, até, anúncios publicitários alusivos ao tema (os quais, além de ajudar o professor a compreender aquilo que importa explorar nessa área em termos linguísticos, poderão, também, ser utilizados em aula enquanto documentos autênticos).

Aqui, e uma vez mais, a chave encontra-se, numa primeira fase, no diagnóstico das necessidades e das dificuldades do aprendente, e, numa segunda fase, numa eficaz seleção e adequação de conteúdos. Será, pois, por via da (re)centração do processo de ensino/aprendizagem no aprendente e da flexibilidade na adequação das metodologias que poderemos, de algum modo, garantir o sucesso de cursos, tanto a nível geral, como aqueles que se destinam a fins mais específicos.


 
6. Bibliografia geral


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Quadro Europeu Comum de Referência para as línguas - Aprendizagem, ensino, avaliação, (2001).Porto: Asa.
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Zabalza, Miguel (2000). Planificação e Desenvolvimento Curricular na Escola. Porto: Asa, 5.ª ed.
Zarate, G. (1986). Enseigner une culture étrangère. Paris: Hachette.
Zarate, G. (1993). Représentations de l’étranger et didactique des langues. Paris: Hachette.

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[1.] Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas Asa: Lisboa (adaptado e simplificado).
[2] Até porque são atores centrais no processo de ensino/aprendizagem…

© Manuel Fontão [2009]
© Manuel Fontão

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