As balizas cronológicas do livro O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984) estão suficientemente delineadas, quer a montante, quer a jusante da estrutura romanesca: a personagem desembarcara, em Lisboa, no dia 29 de Dezembro e desaparecerá, misteriosamente, no dia 08 de Setembro de 1936, altura em que se dá a Revolta dos Marinheiros, também conhecida como o Motim dos Barcos do Tejo.
A trama diegética começa com a frase lapidar e enigmática extraída de Os Lusíadas [Aqui o mar acaba e a terra principia (1984: 9)*] e encerra com a mesma frase, ligeiramente modificada [Aqui, onde o mar acabou e a terra espera (1984: 582)]. Entre estas duas datas, um ano, ou melhor uns magros nove meses (que lembram a gravidez de Lídia...), em que todos os dias terão sido seus. Ou poderiam tê-lo sido, não fosse o alegado alheamento e a pretensa distração da personagem. Não fosse o facto de estar cansado de viver.
Assim, o mar, espaço de viagem, de sonho sebástico e de promessa acaba justamente aonde começará um outro espaço, labiríntico, subterrâneo, confuso, indistinto: a cidade de Lisboa. Por conseguinte, a terra é, desde logo, perspetivada como um local de condenação do homem, uma abóbada hermética que o destruirá, que o submergirá até à última fímbria da sua enfraquecida memória. Em suma, o regresso de Ricardo Reis ao seu país natal significa, não apenas a abdicação da vida, mas também a aceitação da morte, duas faces da mesma moeda, tal como uma folha de papel à qual não podemos subtrair a frente sem, simultaneamente, subtrairmos o verso. Quer dizer que o viajante que desembarca num fim de tarde chuvoso, frio e sombrio (embora o relógio indique que são ainda quatro horas…) veio para acabar de morrer, veio para se encontrar com a morte – que é o ponto de encontro que cada um de nós terá marcado com o destino.
Os dados estão lançados, ou melhor, já o haviam sido. Obra das parcas gregas. Dos deuses. Do fatum. Por conseguinte, a viagem que ora termina, é a viagem do esquecimento, da desmemorização, da purificação e, correlativamente, o Highland Brigade deve ser entendido como o barco da última viagem, uma espécie de barca de Caronte, ou, para melhor dizer, trata-se do navio da morte. Assim também, metonimicamente, o estranho viajante, quando de lá sai, já não pertence ao mundo dos vivos:
Quando amanhã cedo o Highland Brigade sair da barra, que ao menos haja um pouco de sol e de céu descoberto, para que a parda neblina deste tempo astroso não obscureça por completo, ainda à vista de terra, a memória já esvaecente dos viajantes … como se o Highland Brigade viesse a escorrer do fundo do mar, navio duas vezes fantasma (1984: 11).
Na verdade, Ricardo Reis não possui um qualquer projeto válido de vida, perdeu a sua bússola existencial, limita-se apenas a assistir ao espetáculo do mundo, a contemplar passivamente o curso de água que corre em direção à foz, tal como um autómato, tal como uma marioneta, sem vontade própria, sem luz própria, sem contornos definidos, sem lugar. Aliás, o episódio da corrida de táxi é, neste particular, perfeitamente revelador, pois que o curto diálogo põe em evidência o vazio da personagem:
Para onde, e esta pergunta, tão simples, tão natural, tão adequada à circunstância e ao lugar, apanha desprevenido o viajante (…) talvez porque nunca lhe fizeram uma das perguntas fatais, Para onde, a outra, pior, seria, Para quê (1984: 17).
A fatalidade, neste caso, mais não é do que se situar no seu tempo e no seu espaço, e, sobretudo, levar em linha de consideração o quinhão de futuro que cada ser humano possui, pelo menos em tese, à sua disposição. Não. Ricardo Reis não tem mais alguma esperança de vida, não está em medida de assumir o seu futuro próximo ou longínquo: o seu tempo soou para todo o sempre, a ampulheta filtrou já todos os grãos de areia e resta-lhe, apenas, preparar a sua despedida. Parece claro, de resto, que o discípulo não poderá sobreviver ao Mestre. E se Fernando Pessoa já pereceu, o seu émulo não pode, doravante, pertencer ao mundo dos vivos. Só assim se percebe que Ricardo Reis, depois de instalado no famoso Hotel Bragança, depois de ter matado as saudades de uma Lisboa que ele próprio não sabe se realmente conheceu, depois de ter feito uma visita à jazida do seu criador, não seja capaz de responder à pergunta suprema:
E agora, perguntou, E agora Ricardo, ou lá quem tu és, diriam os outros (1984: 58)
Ou um pouco mais adiante:
E agora, Agora, suspendeu a frase, ficou a olhar o espelho na sua frente, Agora vejo-me como elefante que sente aproximar-se a hora de morrer e começa a caminhar para o lugar aonde tem de levar a sua morte (1984: 178).
Jogo especular e macabro. Mas a terra, essa, está à espera dele. E faz-se tarde. É tempo de se entregar. Aliás, Ricardo Reis sabe, doravante, que não pode fugir de si próprio. Tem consciência do seu absurdo. Falta apenas passar a procuração para oficializar o ato solene, ratificar a sua condição de homem morto, lavrar a certidão de óbito. Por conseguinte, Ricardo Reis não pode ter um programa de vida, e aquilo que é dado observar (ao leitor) mais não é do que um cronograma diário, quer dizer, um algoritmo fixo de tarefas que a personagem leva a cabo de forma puramente mecânica. É uma existência fantasmagórica. Note-se, aliás, que ele não aplica os seus saberes intelectualizados à vida prática, ao gesto, por exemplo, ele que hesita se há-de beijar Lídia no momento da cópula. De igual modo, as rotinas do quotidiano (como vestir-se, pentear-se, barbear-se, etc) são executadas, não por uma questão de orgulho próprio, mas por simples réstia de dignidade humana, isto é, por uma espécie de hábito que lhe vem do passado e que a memória há-de apagar. Porque tudo nele é virtual, refletido, indeferido. Porque não tem substância. Porque não tem densidade humana. Nem poderia. É que Ricardo Reis se resume, no fundo, a uma mera sombra que vive a expensas do Mestre, e, como tal, não difere muito do recém-falecido Fernando Pessoa:
Nenhum de nós é verdadeiramente vivo nem verdadeiramente morto (1984: 108/109).
Com efeito, a personagem é incorpórea, etérea, indefinível. Mais não faz do que fingir-se, mais não faz do que simular o ser que (não) é: finge que existe (ele que chega a morder-se para despistar a dúvida…), finge que se interessa pela política temporal e positiva (com a qual não se identifica…), finge que participa num ato religioso (em que tudo lhe parece ridículo e surreal…), finge que participa num comício (em que tudo lhe soa distorcido e extemporâneo), finge que ama Marcenda (uma jovem de 23 anos que chegou fora do tempo**), em suma, finge que vive, mas tudo quanto faz é posicionar-se no lugar do morto: um espetador passivo do espetáculo da vida e de si próprio. Com efeito, todos os atos do quotidiano lhe parecem irreais, fantasmagóricos, inverosímeis:
A sua vida parecia-lhe agora suspensa, expectante, problemática. Minuciosamente, lia os jornais para encontrar guias, fios, traços de um desenho, feições de rosto português, não para delinear um retrato do país, mas para revestir o seu próprio rosto e retrato de uma nova substância (1984: 115).
Ricardo Reis vive apenas no pensamento e pelo pensamento. A sua memória é a do passado mais ou menos remoto. As suas referências estão datadas no tempo e no espaço de um Portugal dividido entre monárquicos e liberais. As imagens de Lisboa confundem-se com as que cá deixou dezasseis antes. Todos os lugares lhe parecem indistintos, amorfos, iguais entre si: não possuem contornos externos, não têm especificidades deícticas, não surgem investidos de marcas emotivas. Com efeito, Ricardo Reis perdeu todas as amarras, todas as âncoras que o poderiam inscrever na napa social dos seres humanos. Por isso, não se sente português. Por isso, não sabe o que é ser portuense. Por isso, não saberá, também, afirmar-se como lisboeta, como, provavelmente, jamais se terá identificado com o Rio de Janeiro. Na realidade, o homem não tem amigos. Não tem vida social. Não tem contexto. Tem uma coisa apenas: esta Lídia, que, curiosamente, não se confunde, em caso algum, com a outra, incorpórea, poética, literária - a parceira das Cloés e das Nereias. Porque Lídia, a criada de servir do Hotel Bragança e a sua amante, não é, para Ricardo Reis, uma companheira, uma pessoa de carne e osso que possa legitimamente aspirar a uma relação de igualdade, mesmo no espaço íntimo que, todavia, ambos partilham. Não. Lídia é a criada de todo o serviço e Ricardo Reis é o senhor doutor que aplaca os seus apetites sexuais a custo zero. Duplamente assistido na sua condição de hóspede e de amante, a personagem honorífica não se chega a envolver sentimentalmente com a jovem. Nem poderia. Falta-lhe a dimensão emotiva, o pasmo essencial, como diria Caeiro. Ou secundário…
Acabou-se o tempo dos cantos. Já lá vai o tempo da redação das famosas odes. Já tudo fora dito, num outro tempo e num outro espaço. E, nesta matéria, tudo quanto viesse Ricardo Reis a dizer, seria repetir-se a si mesmo. Em suma, a relação amorosa está condenada ao fracasso, como já estava antes de começar. Ricardo Reis já não tem mais futuro à sua frente. E Lídia, esta Lídia serviçal, partilha um corpo que jamais lhe pertencerá. Partilha a cama com um espectro. Dorme com um fantasma. E a mão que a acaricia, na calada da noite que envolve e dissimula as formas detalhas do ser pessoa, mais não é do que a mão do morto e a própria figura da morte:
Quem estiver a olhar para nós, a quem é que vê, a si ou a mim, Vê-o a si, ou melhor, vê um vulto que não é você nem eu, Uma soma de nós ambos dividida por dois, Não, diria antes que o produto da multiplicação de um pelo outro (1984: 123).
Assim, entre o morto de facto morto (Pessoa) e o morto aparentemente vivo (Ricardo Reis) a diferença não é muita. Talvez uma questão de sombra, um contorno mal disfarçado, uma ténue linha que se prolonga até ao infinito. Aliás, em certos aspetos, o defunto parece ficar a ganhar, pois que possui características próprias do seu estado, pois que se lhe reconhece pequenos tiques, indeléveis traços específicos da sua personalidade, ao passo que Ricardo Reis, esse, nem isso parece possuir: não tem estado definido, quer dizer, falta-lhe o status, a certidão da sua própria morte, o que faz dele umas figura antropologicamente ilegítima:
Você é como o deserto, nem sombra faz (1984: 250).
Na realidade, Ricardo Reis existe apenas pela palavra – é pura ficção. Aliás, esta multiplicidade da personagem é lembrada durante toda a narrativa, os seus duplos participam desta indefinição suprema. Ricardo Reis não é uma personalidade una, indivisível, homogénea. Bem pelo contrário: são inúmeros os que coabitam no seu seio, é um construído de várias tendências, de várias vozes, de várias consciências fragmentadas e refletidas. Assim é. Falta-lhe, fundamentalmente, integrar-se no seu Mestre, isto é, fazer parte de um todo de que ele, Ricardo Reis, é uma parte desgarrada. Destarte, o que está em causa é, por assim dizer, uma condição que atinge a essência da (sua) humanidade, uma questão, em definitivo, biológica:
Enquanto ia subindo a rua, devagar, sentiu dissipar-se a náusea, apenas lhe ficava uma vaga dor de cabeça, talvez um vago na cabeça, como uma falta, um pedaço de cérebro a menos, a parte que me coube. (1984: 37)
Implica isto que a sua morte não pode ser biologicamente atestada no todo diegético, razão pela qual não há, no universo ficcional, uma passagem da vida para a não-vida, como acontece com o comum dos mortais. Nada de mais lógico, em boa verdade. É que Ricardo Reis não pode morrer porque não vivia, porque não pertencia ao mundo dos vivos:
Então vamos, disse. Para onde é que você vai, Vou consigo (1984: 582).
Homem de palavras, a personagem vive tão-somente pela palavra (Marcenda olha em redor dos móveis pesados, as duas estantes com os poucos livros o mata-borrão verde, então Ricardo Reis diz, Vou beijá-la, ela não respondeu (1984: 341), o que significa que a ação concreta não faz parte do seu modus operandi. Ricardo Reis não age. Não executa o seu próprio programa. Limita-se a existir, move-se na sombra do seu próprio ser e extingue-se pela palavra. Não tem mais que dizer.
A sua vida parecia-lhe agora suspensa, expectante, problemática. Minuciosamente, lia os jornais para encontrar guias, fios, traços de um desenho, feições de rosto português, não para delinear um retrato do país, mas para revestir o seu próprio rosto e retrato de uma nova substância (1984: 115).
Ricardo Reis vive apenas no pensamento e pelo pensamento. A sua memória é a do passado mais ou menos remoto. As suas referências estão datadas no tempo e no espaço de um Portugal dividido entre monárquicos e liberais. As imagens de Lisboa confundem-se com as que cá deixou dezasseis antes. Todos os lugares lhe parecem indistintos, amorfos, iguais entre si: não possuem contornos externos, não têm especificidades deícticas, não surgem investidos de marcas emotivas. Com efeito, Ricardo Reis perdeu todas as amarras, todas as âncoras que o poderiam inscrever na napa social dos seres humanos. Por isso, não se sente português. Por isso, não sabe o que é ser portuense. Por isso, não saberá, também, afirmar-se como lisboeta, como, provavelmente, jamais se terá identificado com o Rio de Janeiro. Na realidade, o homem não tem amigos. Não tem vida social. Não tem contexto. Tem uma coisa apenas: esta Lídia, que, curiosamente, não se confunde, em caso algum, com a outra, incorpórea, poética, literária - a parceira das Cloés e das Nereias. Porque Lídia, a criada de servir do Hotel Bragança e a sua amante, não é, para Ricardo Reis, uma companheira, uma pessoa de carne e osso que possa legitimamente aspirar a uma relação de igualdade, mesmo no espaço íntimo que, todavia, ambos partilham. Não. Lídia é a criada de todo o serviço e Ricardo Reis é o senhor doutor que aplaca os seus apetites sexuais a custo zero. Duplamente assistido na sua condição de hóspede e de amante, a personagem honorífica não se chega a envolver sentimentalmente com a jovem. Nem poderia. Falta-lhe a dimensão emotiva, o pasmo essencial, como diria Caeiro. Ou secundário…
Acabou-se o tempo dos cantos. Já lá vai o tempo da redação das famosas odes. Já tudo fora dito, num outro tempo e num outro espaço. E, nesta matéria, tudo quanto viesse Ricardo Reis a dizer, seria repetir-se a si mesmo. Em suma, a relação amorosa está condenada ao fracasso, como já estava antes de começar. Ricardo Reis já não tem mais futuro à sua frente. E Lídia, esta Lídia serviçal, partilha um corpo que jamais lhe pertencerá. Partilha a cama com um espectro. Dorme com um fantasma. E a mão que a acaricia, na calada da noite que envolve e dissimula as formas detalhas do ser pessoa, mais não é do que a mão do morto e a própria figura da morte:
Quem estiver a olhar para nós, a quem é que vê, a si ou a mim, Vê-o a si, ou melhor, vê um vulto que não é você nem eu, Uma soma de nós ambos dividida por dois, Não, diria antes que o produto da multiplicação de um pelo outro (1984: 123).
Assim, entre o morto de facto morto (Pessoa) e o morto aparentemente vivo (Ricardo Reis) a diferença não é muita. Talvez uma questão de sombra, um contorno mal disfarçado, uma ténue linha que se prolonga até ao infinito. Aliás, em certos aspetos, o defunto parece ficar a ganhar, pois que possui características próprias do seu estado, pois que se lhe reconhece pequenos tiques, indeléveis traços específicos da sua personalidade, ao passo que Ricardo Reis, esse, nem isso parece possuir: não tem estado definido, quer dizer, falta-lhe o status, a certidão da sua própria morte, o que faz dele umas figura antropologicamente ilegítima:
Você é como o deserto, nem sombra faz (1984: 250).
Na realidade, Ricardo Reis existe apenas pela palavra – é pura ficção. Aliás, esta multiplicidade da personagem é lembrada durante toda a narrativa, os seus duplos participam desta indefinição suprema. Ricardo Reis não é uma personalidade una, indivisível, homogénea. Bem pelo contrário: são inúmeros os que coabitam no seu seio, é um construído de várias tendências, de várias vozes, de várias consciências fragmentadas e refletidas. Assim é. Falta-lhe, fundamentalmente, integrar-se no seu Mestre, isto é, fazer parte de um todo de que ele, Ricardo Reis, é uma parte desgarrada. Destarte, o que está em causa é, por assim dizer, uma condição que atinge a essência da (sua) humanidade, uma questão, em definitivo, biológica:
Enquanto ia subindo a rua, devagar, sentiu dissipar-se a náusea, apenas lhe ficava uma vaga dor de cabeça, talvez um vago na cabeça, como uma falta, um pedaço de cérebro a menos, a parte que me coube. (1984: 37)
Implica isto que a sua morte não pode ser biologicamente atestada no todo diegético, razão pela qual não há, no universo ficcional, uma passagem da vida para a não-vida, como acontece com o comum dos mortais. Nada de mais lógico, em boa verdade. É que Ricardo Reis não pode morrer porque não vivia, porque não pertencia ao mundo dos vivos:
Então vamos, disse. Para onde é que você vai, Vou consigo (1984: 582).
Homem de palavras, a personagem vive tão-somente pela palavra (Marcenda olha em redor dos móveis pesados, as duas estantes com os poucos livros o mata-borrão verde, então Ricardo Reis diz, Vou beijá-la, ela não respondeu (1984: 341), o que significa que a ação concreta não faz parte do seu modus operandi. Ricardo Reis não age. Não executa o seu próprio programa. Limita-se a existir, move-se na sombra do seu próprio ser e extingue-se pela palavra. Não tem mais que dizer.
* Eis aqui, quase cume da cabeça / De Europa toda, o Reino Lusitano, / Onde a terra se acaba e o mar começa (Os Lusíadas, III, 20).
**Aliás, o braço paralítico desta mulher gerundiva (a fazer lembrar a igualmente a gerundiva Blimunda…) constitui, metonimicamente, a paralisia de todo o seu ser – daí o fetichismo que sente pelo apêndice da jovem…
© Manuel Fontão
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