2010/12/05

O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS: o lugar do morto

1. O LUGAR DO MORTO

As balizas cronológicas do livro O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984) estão suficientemente delineadas, quer a montante, quer a jusante da estrutura romanesca: a personagem desembarcara, em Lisboa, no dia 29 de Dezembro e desaparecerá, misteriosamente, no dia 08 de Setembro de 1936, altura em que se dá a Revolta dos Marinheiros, também conhecida como o Motim dos Barcos do Tejo.

A trama diegética começa com a frase lapidar e enigmática extraída de Os Lusíadas [Aqui o mar acaba e a terra principia (1984: 9)*] e encerra com a mesma frase, ligeiramente modificada [Aqui, onde o mar acabou e a terra espera (1984: 582)]. Entre estas duas datas, um ano, ou melhor uns magros nove meses (que lembram a gravidez de Lídia...), em que todos os dias terão sido seus. Ou poderiam tê-lo sido, não fosse o alegado alheamento e a pretensa distração da personagem. Não fosse o facto de estar cansado de viver.

Assim, o mar, espaço de viagem, de sonho sebástico e de promessa acaba justamente aonde começará um outro espaço, labiríntico, subterrâneo, confuso, indistinto: a cidade de Lisboa. Por conseguinte, a terra é, desde logo, perspetivada como um local de condenação do homem, uma abóbada hermética que o destruirá, que o submergirá até à última fímbria da sua enfraquecida memória. Em suma, o regresso de Ricardo Reis ao seu país natal significa, não apenas a abdicação da vida, mas também a aceitação da morte, duas faces da mesma moeda, tal como uma folha de papel à qual não podemos subtrair a frente sem, simultaneamente, subtrairmos o verso. Quer dizer que o viajante que desembarca num fim de tarde chuvoso, frio e sombrio (embora o relógio indique que são ainda quatro horas…) veio para acabar de morrer, veio para se encontrar com a morte – que é o ponto de encontro que cada um de nós terá marcado com o destino.

Os dados estão lançados, ou melhor, já o haviam sido. Obra das parcas gregas. Dos deuses. Do fatum. Por conseguinte, a viagem que ora termina, é a viagem do esquecimento, da desmemorização, da purificação e, correlativamente, o Highland Brigade deve ser entendido como o barco da última viagem, uma espécie de barca de Caronte, ou, para melhor dizer, trata-se do navio da morte. Assim também, metonimicamente, o estranho viajante, quando de lá sai, já não pertence ao mundo dos vivos:

Quando amanhã cedo o Highland Brigade sair da barra, que ao menos haja um pouco de sol e de céu descoberto, para que a parda neblina deste tempo astroso não obscureça por completo, ainda à vista de terra, a memória já esvaecente dos viajantes … como se o Highland Brigade viesse a escorrer do fundo do mar, navio duas vezes fantasma (1984: 11).

Na verdade, Ricardo Reis não possui um qualquer projeto válido de vida, perdeu a sua bússola existencial, limita-se apenas a assistir ao espetáculo do mundo, a contemplar passivamente o curso de água que corre em direção à foz, tal como um autómato, tal como uma marioneta, sem vontade própria, sem luz própria, sem contornos definidos, sem lugar. Aliás, o episódio da corrida de táxi é, neste particular, perfeitamente revelador, pois que o curto diálogo põe em evidência o vazio da personagem:

Para onde, e esta pergunta, tão simples, tão natural, tão adequada à circunstância e ao lugar, apanha desprevenido o viajante (…) talvez porque nunca lhe fizeram uma das perguntas fatais, Para onde, a outra, pior, seria, Para quê (1984: 17).

A fatalidade, neste caso, mais não é do que se situar no seu tempo e no seu espaço, e, sobretudo, levar em linha de consideração o quinhão de futuro que cada ser humano possui, pelo menos em tese, à sua disposição. Não. Ricardo Reis não tem mais alguma esperança de vida, não está em medida de assumir o seu futuro próximo ou longínquo: o seu tempo soou para todo o sempre, a ampulheta filtrou já todos os grãos de areia e resta-lhe, apenas, preparar a sua despedida. Parece claro, de resto, que o discípulo não poderá sobreviver ao Mestre. E se Fernando Pessoa já pereceu, o seu émulo não pode, doravante, pertencer ao mundo dos vivos. Só assim se percebe que Ricardo Reis, depois de instalado no famoso Hotel Bragança, depois de ter matado as saudades de uma Lisboa que ele próprio não sabe se realmente conheceu, depois de ter feito uma visita à jazida do seu criador, não seja capaz de responder à pergunta suprema:

E agora, perguntou, E agora Ricardo, ou lá quem tu és, diriam os outros (1984: 58)

Ou um pouco mais adiante:

E agora, Agora, suspendeu a frase, ficou a olhar o espelho na sua frente, Agora vejo-me como elefante que sente aproximar-se a hora de morrer e começa a caminhar para o lugar aonde tem de levar a sua morte (1984: 178).

Jogo especular e macabro. Mas a terra, essa, está à espera dele. E faz-se tarde. É tempo de se entregar. Aliás, Ricardo Reis sabe, doravante, que não pode fugir de si próprio. Tem consciência do seu absurdo. Falta apenas passar a procuração para oficializar o ato solene, ratificar a sua condição de homem morto, lavrar a certidão de óbito. Por conseguinte, Ricardo Reis não pode ter um programa de vida, e aquilo que é dado observar (ao leitor) mais não é do que um cronograma diário, quer dizer, um algoritmo fixo de tarefas que a personagem leva a cabo de forma puramente mecânica. É uma existência fantasmagórica. Note-se, aliás, que ele não aplica os seus saberes intelectualizados à vida prática, ao gesto, por exemplo, ele que hesita se há-de beijar Lídia no momento da cópula. De igual modo, as rotinas do quotidiano (como vestir-se, pentear-se, barbear-se, etc) são executadas, não por uma questão de orgulho próprio, mas por simples réstia de dignidade humana, isto é, por uma espécie de hábito que lhe vem do passado e que a memória há-de apagar. Porque tudo nele é virtual, refletido, indeferido. Porque não tem substância. Porque não tem densidade humana. Nem poderia. É que Ricardo Reis se resume, no fundo, a uma mera sombra que vive a expensas do Mestre, e, como tal, não difere muito do recém-falecido Fernando Pessoa:

Nenhum de nós é verdadeiramente vivo nem verdadeiramente morto (1984: 108/109).
* Eis aqui, quase cume da cabeça / De Europa toda, o Reino Lusitano, / Onde a terra se acaba e o mar começa (Os Lusíadas, III, 20).

**Aliás, o braço paralítico desta mulher gerundiva (a fazer lembrar a igualmente a gerundiva Blimunda…) constitui, metonimicamente, a paralisia de todo o seu ser – daí o fetichismo que sente pelo apêndice da jovem…
© Manuel Fontão

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