1. INTRODUÇÃO
"L’organisation ne s’adapte pas mécaniquement aux contraintes extérieures. Les acteurs au sein de l’organisation ont toujours des choix possibles : ils en débattent, construisent une organisation dont les résultats sont ensuite sanctionnés par l’extérieur. Mais l’environnement ne dicte pas l’organisation."
Bernoux, Philippe. La sociologie des organisations, p. 117.
Os professores em tempos de mudança... Um tema (demasiado?) recorrente nos dias de hoje. Uma problemática em voga no mundo contemporâneo, provavelmente pela razão apontada por Tyack (a propósito da reestruturação - Hargreaves, Andy, 1991:273). Mas em que é que consiste exactamente o exercício da função docente? O que é que se esconde, pois, por detrás do conceito tão cómodo e difuso de “professor”? Será, em última análise, legítimo falarmos de um estatuto profissional, quando todos nós pressentimos, de forma mais ou menos intuitiva, que o professor é uma espécie de figura híbrida situada algures entre o artífice, o técnico e o missionário? E o que é que significa, por outro lado, o termo mudança, sobretudo quando nos apercebemos de que “as pessoas se transformam em textos transitórios predominantemente para serem lidos” (op. cit: 78)? Em que contexto se manifesta a retórica das teorias colaborativas, verdadeiro metaparadigma das sociedades pós-modernas? E que implicações sociais e/ou organizacionais acarreta o continuum das reformas educativas, se “toda a solução implica um novo problema” (op. cit: 156)?
Não obstante a riqueza e a vitalidade do assunto vou, por razões de ordem metodológica, ajustar a primeira parte deste trabalho aos moldes mais ou menos estreitos das técnicas textuais, pois que me cumpre – e isto para hipostasiar a linguagem do nosso autor – elaborar um resumo de carácter eminentemente técnico-racional, neste sentido que me proponho (re)produzir de forma sucinta a obra em causa.
Poder-se-á, nesta óptica, falar de um grau zero da criatividade? De certo modo, neste sentido que mesmo um provérbio - grau zero da linguagem - pode ser investido, em último recurso, de um certo cunho pessoal (i. e. um efeito de estilo). Posição todavia ingrata para o crítico, cujo papel é o de inscrever o seu texto no universo da arquitextualidade (ou na différance, para utilizar um termo-chave muito caro a Jacques Derrida...), o que significa que a tarefa consiste, no essencial, em levar a cabo a desconstrução do texto – sem todavia cair no plágio ou na contrafacção.
Na segunda parte do estudo, e na observação directa da leitura da obra, adoptarei uma perspectiva predominantemente fenomenológica, isto é, um comentário cujo ângulo de visão será interior, subjectivo – vivido por dentro, sem que isso signifique prejuízo do paratexto correspondente ao texto-fonte.
Em guisa de remate, gostaria de referir que esta secção pode – e deve! – ser lida de uma forma pós-moderna (um pouco a exemplo da própria obra – a começar pela distribuição fluida e problematizada do seu título...), o que implica que Os Professores em Tempo de Mudança é susceptível de ser virtualmente colocada no final do trabalho, prefigurando, desse modo, a metáfora do mosaico fluido...
2. SÍNTESE
“Desce da cruz – precisamos de madeira”
Hargreaves, Andy (1998). Os Professores em Tempo de Mudança – O Trabalho e a Cultura dos Professores na Idade Pós-Moderna. Lisboa: McGraw-Hill. p. 199.
A obra está estruturada em três partes cujos conteúdos temáticos – a Mudança, o Tempo, o Trabalho e a Cultura – não correspondem a uma repartição equitativa e simétrica da importância atribuída e do espaço físico utilizado. Na realidade, a Mudança constitui uma espécie de arquitema, dado que (pre)domina e superintende, por assim dizer, todos os outros.
O autor, após ter definido alguns conceitos operatórios, assinala algumas funções acrescidas da Escola, as quais se convertem correlativamente em novas exigências dirigidas aos professores. Deste modo, a Escola tem como principal tarefa, a de regenerar as economias nacionais, a de reconstruir as identidades nacionais, ao mesmo tempo que surge incumbida de recuperar uma cultura de carácter cada vez mais vasto e globalizante – e, por conseguinte, pós-moderno.
Assim é. Numa sociedade em pânico, numa sociedade em crise económica, importa na verdade implementar reformas. E contra-reformas. Urge pois que compreendamos as mudanças. Quer se trate de mudanças de ramo (designadamente, a introdução do currículo nacional, o estabelecimento de metas detalhadas, a instauração do sistema de testes estandardizados, a criação de um novo sistema de exames públicos – entre outros). Quer se trate de mudanças de raiz (nomeadamente, a implementação da avaliação de desempenho, o rumo em direcção às autonomias de Escola – para citar apenas o essencial…) Para tal, torna-se necessário esboçarmos, ainda que de forma cursiva, o contexto da mudança. Trata-se, na realidade, de uma sociedade tributária simultaneamente do pensamento moderno e pós-moderno, de uma sociedade assente, por um lado, na crença no progresso racional (científico) e, por outro, na percepção de que é necessário, doravante, viver sem grandes certezas, sem um centro decisório único, tentacular e redentor. Trata-se, enfim, de nos adaptarmos a uma diluição mais ou menos irreversível de papéis e de fronteiras.
Posto isto, podemos questionar, juntamente com o autor, o processo de mudança, ou seja, podemos compreender de forma cibernética (aliás, a Educação, como muito bem diz Zabalza, “não é um logaritmo fixo de acções numa sequência rígida” (Cf. Zabalza, Miguel A. (1998). Planificação e Desenvolvimento Curricular na Escola. Lisboa. Edições Asa. p.09) e projectiva o pathos de uma determinada reforma educativa, cujo processo se desenvolve, pois, em três domínios vitais do ensino: o trabalho, o tempo e a cultura (cultura profissional, entenda-se – o que corresponde, na prática, ao conjunto de saberes, de crenças, de representações, de métodos, de exigências, que surgem perspectivados num espírito de colaboração interdisciplinar e/ou de colegialidade)...
Tempo agora para nos debruçarmos sobre opretexto (pré-texto?) da mudança, que, no plano das ideias, corresponde ao mal-estar da modernidade. Em que consiste ao certo este período sócio-histórico (que tem as suas raízes no Iluminismo, na idade da Razão e reforçada pela Revolução Francesa de 1789), subdividido aqui em Modernidade e Modernidade Recente (ou Alta Modernidade, termo utilizado preferencialmente por Anthony Giddens)? Ora, caracteriza-se, acima de tudo, por uma grande ambivalência de signos, pois que a produtividade, a eficiência e a prosperidade só são conseguidas à custa de uma certa desqualificação profissional – e humana. É aliás num contexto da especialização das tarefas, da racionalização dos meios, da optimização do produto (refiro-me, em concreto, a Charles Taylor...), em suma, é num contexto da certeza científica que se dá o advento do Estado-Nação, do Estado-planificado que, entre outras coisas, promove a educação de massas e institucionaliza a escolaridade obrigatória.
Todavia, por volta dos anos 70, as organizações sociais modernas vão sofrer cada vez mais pressões, no sentido de uma maior flexibilidade, de uma melhor capacidade de resposta e de uma crescente dispersão do controlo. Entramos, pois, na Pós-Modernidade (advento esse distinto do Pós-Modernismo, que consiste, segundo o autor, num fenómeno estético, cultural e intelectual), cujo discurso compreende, ao contrário do estádio anterior, a padrões particulares de relações sociais, económicas, políticas e culturais. Em face, pois, deste novo estado de coisas, numa altura em que a natureza anacrónica da escola se torna cada vez mais evidente, coexistem, num contexto gradual de conflitualidade, duas respostas educativas imbricadas uma na outra: uma moderna e outra pós-moderna.
Chegados aqui, impõe-se que abordemos de forma quão económica quanto possível, o contexto da mudança, cuja unidade conceptual se pode resumir, no essencial, à descrição das sete dimensões e aspectos paradoxais da condição pós-moderna, a saber:
• as economias flexíveis, que se caracterizam por tecnologias e processos de trabalho mais flexíveis e sustentados, por um novo tipo de relações entre o produto e o consumo, por uma nova utilização do espaço geográfico e por uma rotação constante nas atribuições das tarefas;
• o paradoxo da globalização, que conduz ao reforço dos currículos nacionais tradicionais e à xenofobia – tornando o professor mais defensivo e consumidor de currículo (desqualificando-o);
• as certezas mortas, fenómeno recorrente num tipo de sociedade em que a ciência perdeu toda e qualquer credibilidade;
• o mosaico fluido, ou seja, um modelo organizacional caracterizado pelo grau de flexibilidade, pela capacidade de adaptação (adaptabilidade), pelo índice de criatividade, pelo sentido de oportunidade, pelo espírito de colaboração, pelo aperfeiçoamento contínuo, pela orientação positiva para a resolução de problemas e pelo empenho na maximização da capacidade de aprender. Podemos afirmar, aliás, juntamente com o sociólogo, que este paradigma modelar das organizações pós-modernas se preocupa com a criação de laços mais significativos e contínuos entre os seus actores (contrariamente às organizações modernas que antevêem uma trajectória de carreira clara e previsível, uma clareza e estabilidade de tarefas e responsabilidades e uma acumulação gradual dos benefícios, decorrentes da antiguidade de serviço);
• o eu sem limites, provocado pelas sociedades da imagem instantânea, o que implica uma perda progressiva da consistência do eu. Dito de outro modo, trata-se de um processo em que a consciência se volatiza, perde pontos de referências concretos – tornando-se auto-referencial;
• a simulação segura, superveniente, como é óbvio, de uma crescente sofisticação tecnológica. Quer isto dizer que a imagem mediatizada (e mediata) da cidade de Vila do Conde, por exemplo, supera e edulcora a cidade física (Vila do Conde), o que significa que, no plano epistemológico, a realidade é bem mais desordenada e incontrolável do que a sua representação semiótica;
• a compressão do tempo e do espaço, que se traduz, em substância, na redução de despesas de produção, na flexibilização optimizada e na comunicação instantânea.
Todos estes significados (paradoxos) se encontram, de acordo com o pensamento do autor, ainda em aberto, pelo que a condição pós-moderna não pode deixar de ser complexa, contraditória, contestada – em suma, transitória. Por definição (tal como indica o prefixo…).
A segunda parte reúne o tempo e o trabalho dos professores, este último perspectivado sob o ângulo da sua intensificação. Mas comecemos pelo primeiro tema-chave, no caso vertente, o tempo, que, aqui, é abordado como constituindo um elemento de estruturação do trabalho docente – e simultaneamente estruturado por estes. Relativamente ao assunto em causa, o autor destaca quatro dimensões, que abaixo se transcrevem e sumariamente se definem:
• o tempo técnico-racional, isto é, o tempo previsto para a distribuição das tarefas, para a planificação e para a programação tecnicamente eficientes. Dito por outras palavras, trata-se do tempo requerido para o(s) efeito(s) que acabamos de referir, tendo em conta obviamente as necessidades educativas do momento, os recursos disponíveis e as competências técnicas dos professores envolvidos. Trata-se, em última análise, de um tempo “público”, “objectivo”, “fixo”;
• o tempo micropolítico, ou seja, o tempo que reflecte as configurações dominantes das redes de poder, como é o caso de disciplinas que vêem aplicada uma matriz nuclear e obrigatória, ao lado de outras áreas do saber disciplinar, em que se verifica uma matriz exploratória e opcional;
• o tempo fenomenológico, quer dizer, aquele que é vivido, aquele que possui uma dimensão essencialmente interior e que, por conseguinte, varia de pessoa para pessoa e de acordo com as ocupações e preocupações do momento. É, por excelência, o tempo característico dos docentes, aquele justamente que reflecte uma visão policrónica do mundo (ao passo que a concepção do tempo dos administradores é tributária de uma forma de estar e de sentir monocrónica – o que não acarreta qualquer juízo de valor, prendendo-se, antes, e de forma exclusiva, com a visão (situacional ou diferida) da sala de aula, pois que o administrador pode muito bem possuir, por exemplo, uma visão policrónica do seu gabinete de trabalho…);
• o tempo sociopolítico, cuja acepção contém dois aspectos importantes, a saber a separação e a colonização. Por separação, entenda-se como algo de inerente aos interesses, à responsabilização e às perspectivas temporais de uns e de outros, quer dizer, dos administradores e dos professores (aliás, a intensificação do trabalho docente advém precisamente deste conflito primário...), enquanto por colonização, se deve entender, em primeira instância, a vigilância crescente dos espaços de retaguarda (em oposição às regiões frontais, em cujo espaço o professor está predominante e profundamente submetido...), o que faz com que o que é privado, espontâneo e imprevisível se torne, sob certas condições, público, controlado, previsível – superiormente colonizado.
É, por conseguinte, com base nesta última dimensão que se pode falar de pacto faustiano, na medida em que os docentes entregam, em troca de um punhado de riquezas mundanas, toda a sua alma profissional – o seu poder discricionário e a sua privacidade.
Falei acima de trabalho e disse que o autor o utiliza como sinónimo muito próximo de intensificação. Convém, agora, referir que o termo deriva das teorias marxistas e traduz, em último recurso, uma espécie de desqualificação e desprofissionalização dos professores que tem a ver, por razões óbvias, com a falta de tempo e o consequente apego, por parte dos docentes, a programas prescritos, a métodos minuciosamente programados, a currículos impingidos em pacotes cientificamente (com)provados – cujos processos, refira-se, vêm (viriam) ajudar e compensar o profissional…
Parece, doravante, óbvio que um tal fenómeno se prende com a definição do verdadeiro papel do professor que, em certos países, é mais dirigido para a aprendizagem e para o desempenho académico, como é o caso da França, enquanto noutros, nomeadamente na Grã-Bretanha e na América do Norte, ele surge imbuído de finalidades sociais e emocionais de bem-estar familiar, de desempenho escolar e, de resto, espartilhado em tarefas tão díspares quanto aquelas que seguem:
• atender alunos da Educação Especial inseridos nas turmas regulares;
• flexibilizar currículos nacionais (tornando-os mais atractivos ao meio local);
• adaptar-se a e/ou assimilar inovações que proliferam, que se entrecruzam e que se neutralizam;
• responder a pressões no sentido da(s) reforma(s);
• gerir a diversidade (progressiva mas constante) das estratégias de avaliação;
• incentivar a crescente consulta/intervenção/participação dos pais e encarregados de educação;
• reequilibrar a dispersão/difusão/(com)fusão de papéis;
• cumprir as obrigações administrativas – e que não são tão poucas quanto poderíamos imaginar!
Quem muito abarca pouco aperta. Mas, justamente, porque o professor não pode levar a cabo aquilo que lhe é exigido, torna-se doravante possível falarmos, em sintonia aliás com o autor, de trajectos de culpa, designadamente, o esgotamento, o abandono do ensino, o cinismo, a negação dos valores, quer os supervenientes da culpa persecutória, que ocorrem, por exemplo, quando fazemos algo de proibido ou eticamente pouco recomendado, quer os advindos da culpa depressiva, que emergem do facto de termos de admitir que magoámos um objecto interno bom ou a sua representação.
Num segundo momento, o autor refere-se às armadilhas da culpa, as quais, segundo o estudioso, se encontram na intersecção de quatro trajectórias possíveis, a saber:
• no empenho exagerado do cuidado para com os outros (neste sentido, a profissão de docente, entre outras, podem ser designadas por care professions);
• na natureza aberta do ensino, uma vez que ensinar não tem fim;
• na prestação de contas e na intensificação da função docente, isto é, na vontade natural em dar uma resposta eficaz e eficiente às exigências crescentes do ensino;
• na persona do perfeccionismo, que exige a separação do aspecto público do aspecto privado, sob pena de o docente ser considerado inadequado, incompetente e incompatível. Na verdade, o professor é visto como uma figura exemplar e deificada, pelo que o queixume, a alusão a factos pessoais, ou o desabafo são práticas excluídas pela natureza da sua profissão...
Face ao exposto, parece fácil perceber as razões profundas desta ansiedade: elas têm a ver com aspectos tão diversos como a competência, a eficácia, a eficiência – em suma, elas prendem-se com a representação que possuem da sua profissão. Aliás, o autor não ignora esta questão central quando afirma que o melhor seria os professores considerarem a sua profissão como uma missão, na medida em que, desse modo, desfariam as incertezas (...) forjando crenças e objectivos comuns. Com efeito, falta definir o perfil do bom professor ou, se quisermos, falta esboçar o ethos profissional do professor ideal, pelo que, à falta de uma base técnico-profissional do exercício da função, lhes resta, aos “profissionaisdo ensino” (as aspas constituem o reconhecimento técnico que o termo encerra uma semanticidade transversal …), recorrerem – hoje mais do nunca – às culturas de apoio, de confiança, de colaboração – em resumo, aos requisitos da colegialidade.
Na terceira – e última – parte da obra, o autor começa por apresentar o individualismo como uma heresia genérica (formal), em contraste com a heresia substantiva ( conteudística), esboçando, em seguida, duas dimensões essenciais das culturas de ensino – o conteúdo e a forma – sendo que, esta última, consiste em padrões típicos de relacionamento e formas de associação entre os seus membros.
Num outro passo, Hargreaves aponta quatro formas de cultura docente, no caso vertente, o individualismo, a colaboração, a colegialidade artificial e a balcanização, perspectivando, no decorrer deste capítulo, a primeira forma de cultura, o individualismo, sob dois aspectos:
• o individualismo enquanto défice psicológico, associado a comportamentos de defesa;
• o individualismo enquanto condição do local de trabalho, surgindo, aqui, como estratégia de adaptação ao ambiente de trabalho.
Deste modo, o individualismo ganha contornos de um fenómeno social e cultural altamente matizado, recuperando aliás alguns aspectos positivos, designadamente a autonomia individual e as recompensas íntimas, ou seja, aquilo que se traduz, na prática, pela satisfação ou alegria que os professores sentem numa determinada situação do ensino/aprendizagem.
Neste particular, deve realçar-se o facto de o nosso autor subdividir o fenómeno do individualismo em três tipos: constrangido, estratégico e electivo, acabando por centrar a sua atenção nesta última subcategoria, ao qual ele acopla três temas-satélite: o cuidado pessoal (intimamente ligado à posse e ao controlo), a individualidade (definida pelo espírito de independência e de iniciativa, pela excentricidade e pela imaginação, para além de se traduzir no exercício de juízos independentes e discricionários ligados à competência – ao invés do individualismo, que se caracteriza pela anarquia e pela atomização social…) e a solidão (perspectivada como uma retirada).
No capítulo subsequente, o autor debruça-se sobre as culturas de colaboração, que constituem, a seu ver, a principal e mais representativa forma de cultura de ensino. Com efeito, a colaboração (ou colegialidade), é considerada como uma conditio sine qua non para um desenvolvimento curricular eficaz e como uma ponte vital entre o desenvolvimento da escola e o crescimento profissional dos professores, podendo assumir várias formas muito diferentes: o ensino em equipa, a planificação conjunta, o treino com pares e as relações de mentores – entre outras.
Importa salientar que a colaboração se pode concretizar em múltiplos espaços sociais, nomeadamente fora da sala de aulas ou na sala de professores, pode, por outro lado, assumir várias versões ou modalidades, como por exemplo, “explorar” ideias e recursos(versões que se devem a Judith Warren Little), dar e receber ajuda e assistência e, por fim, partilhar ideais e materiais. Contudo, a colegialidade, segundo o autor, só muito raramente chega a atingir o espaço-aula...
Quanto ao fenómeno em si, Hargreaves refere duas perspectivas possíveis de abordagem analítica: a cultural e a micropolítica, optando por esta última, dado que a perspectiva micropolítica, ao contrário da perspectiva cultural, dá um maior relevo às diferenças sistémicas de um determinado grupo organizacional, sendo também capaz de levantar toda uma gama de questões sobre os direitos do indivíduo…
É aliás esta perspectiva que o conduz à definição comparada do conceito de colegialidade artificial que mais não é do que o conjunto dos efeitos perversos das culturas de colaboração. Com efeito, enquanto a teoria colaborativa é espontânea, voluntária, orientada para o desenvolvimento e imprevisível, a colegialidade artificial, essa, é construída e regulada do ponto de vista administrativo, é compulsiva, é orientada para a implementação de medidas externas e não-motivadas, ou, dito por outros termos, é fixa no tempo e no espaço e, de resto, previsível.
Em suma, a colegialidade artificial, justamente porque revela ser insensível ao contexto, às especificidades das situações vividas e aos juízos discricionários dos docentes, acarreta graves consequências para o ensino e para os seus actores, o que se traduz, em último recurso, na ineficácia e na ineficiência das práticas em causa. Na realidade, ao esmagar o profissionalismo, ao anular o juízo independente, ao menosprezar, distrair e enganar o docente, a colegialidade artificial surge como uma mera operação de cosmética – quando deveria, antes, devolver aos professores o poder real.
Falamos de colaboração. Falamos obviamente de interacção entre docentes, cujos padrões se desenvolvem de forma particular – seja para unir, seja para dividir. Ora, uma das colaborações que dividem profundamente o docente são aquelas que o autor designa por culturas balcanizadas, cujas realizações concretas são, entre outras, os departamentos disciplinares das escolas do ensino secundário, as quais se caracterizam pela baixa permeabilidade (o que conduz a um isolamento cubicular), pela forte permanência ao longo do tempo (o que faz com que a incomunicabilidade entre outros grupos seja total), pela forte identificação pessoal para com o departamento disciplinar (o que contribui para a magra socialização dos docentes) e pela compleição política (enquanto repositórios de interesses pessoais).
Posto isto, e tendo em conta que os modelos organizacionais das escolas continuam a ser, como ficou dito acima, marcadamente modernos, esta divisão dos professores em pequenos grupos separados limita a acção para a qual o docente é destinado: o cuidado para com os outros. Mas não é tudo. A balcanização suscita, por outro lado, invejas entre as disciplinas ditas académicas e as disciplinas ditas exploratórias, fomenta a divisão entre os que têm acesso facilitado à esfera da tomada de decisão e os excluídos desse mesmo processo, e, enfim, reduz as oportunidades de os professores aprenderem uns com os outros. Deste modo, a balcanização recria o mito da imutabilidade do corpo docente.
Todavia, num mundo pós-moderno rápido, comprimido e complexo, as estruturas balcanizadas têm dificuldade em articularem três aspectos: os recursos humanos necessários, o crescimento profissional contínuo dos docentes e a capacidade de dar resposta às mudanças impostas pela comunidade. O antídoto? Adoptar um outro modelo organizacional – o mosaico fluido – que seja capaz de esbater ou mesmo diluir as lideranças departamentais, as recompensas institucionalizadas e as estratificações de carreira.
Importa, pois, perceber o processo da mudança que, nas suas manifestações superficiais, pode assumir várias formas (reestruturação, reculturação, colaboração ou qualquer outra configuração semelhante). Ora, no que se refere à reestruturação, é importante precisar que, apesar da ambivalência do termo – que tanto pode reforçar a reintrodução do controlo burocrático como o fortalecimento profissional – ele deve promover, em primeira instância, as relações de poder instauradas no contexto escolar. Neste sentido, reestruturar significa empenharmo-nos no desenvolvimento de certos tipos de colaboração, mas também – e sobretudo – transpor tal modelo. Assim, num momento em que enfrentamos novos desafios, torna-se curial discutir e resolver as tensões-chave essenciais existentes tanto na reestruturação educativa como no trabalho de colaboração, a saber:
• visão/voz, que importa reconciliar mais do que prolongar a cacofonia;
• confiança nas pessoas/confiança nos métodos que importa estimular em termos de reconstrução de relações de trabalho, sem todavia reforçar o paternalismo e o paroquialismo (e sem prejuízo da confiança nos métodos sobre a confiança interpessoal);
• estrutura/cultura, tendo em conta que a perspectiva estrutural menospreza as tradições, os pressupostos e as relações de trabalho, enquanto a perspectiva cultural os encoraja justamente.
A reestruturação não representa, todavia, o fim da problematização das questões educativas e, de modo mais abrangente, das questões organizacionais. Trata-se, apenas de um início, isto é, de uma oportunidade para definirmos, em conjunto, novas regras e objectivos que respondam eficaz e eficientemente aos novos desafios. E o modelo do mosaico fluido parece capaz, segundo o autor, de fornecer as bases de uma nova forma de cultura docente. A praxeologia docente encarregar-se-á de confirmar – ou de infirmar – a(s) tese(s) preconizada(s)… Modus probandi!
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Poder-se-á, nesta óptica, falar de um grau zero da criatividade? De certo modo, neste sentido que mesmo um provérbio - grau zero da linguagem - pode ser investido, em último recurso, de um certo cunho pessoal (i. e. um efeito de estilo). Posição todavia ingrata para o crítico, cujo papel é o de inscrever o seu texto no universo da arquitextualidade (ou na différance, para utilizar um termo-chave muito caro a Jacques Derrida...), o que significa que a tarefa consiste, no essencial, em levar a cabo a desconstrução do texto – sem todavia cair no plágio ou na contrafacção.
Na segunda parte do estudo, e na observação directa da leitura da obra, adoptarei uma perspectiva predominantemente fenomenológica, isto é, um comentário cujo ângulo de visão será interior, subjectivo – vivido por dentro, sem que isso signifique prejuízo do paratexto correspondente ao texto-fonte.
Em guisa de remate, gostaria de referir que esta secção pode – e deve! – ser lida de uma forma pós-moderna (um pouco a exemplo da própria obra – a começar pela distribuição fluida e problematizada do seu título...), o que implica que Os Professores em Tempo de Mudança é susceptível de ser virtualmente colocada no final do trabalho, prefigurando, desse modo, a metáfora do mosaico fluido...
2. SÍNTESE
“Desce da cruz – precisamos de madeira”
Hargreaves, Andy (1998). Os Professores em Tempo de Mudança – O Trabalho e a Cultura dos Professores na Idade Pós-Moderna. Lisboa: McGraw-Hill. p. 199.
A obra está estruturada em três partes cujos conteúdos temáticos – a Mudança, o Tempo, o Trabalho e a Cultura – não correspondem a uma repartição equitativa e simétrica da importância atribuída e do espaço físico utilizado. Na realidade, a Mudança constitui uma espécie de arquitema, dado que (pre)domina e superintende, por assim dizer, todos os outros.
O autor, após ter definido alguns conceitos operatórios, assinala algumas funções acrescidas da Escola, as quais se convertem correlativamente em novas exigências dirigidas aos professores. Deste modo, a Escola tem como principal tarefa, a de regenerar as economias nacionais, a de reconstruir as identidades nacionais, ao mesmo tempo que surge incumbida de recuperar uma cultura de carácter cada vez mais vasto e globalizante – e, por conseguinte, pós-moderno.
Assim é. Numa sociedade em pânico, numa sociedade em crise económica, importa na verdade implementar reformas. E contra-reformas. Urge pois que compreendamos as mudanças. Quer se trate de mudanças de ramo (designadamente, a introdução do currículo nacional, o estabelecimento de metas detalhadas, a instauração do sistema de testes estandardizados, a criação de um novo sistema de exames públicos – entre outros). Quer se trate de mudanças de raiz (nomeadamente, a implementação da avaliação de desempenho, o rumo em direcção às autonomias de Escola – para citar apenas o essencial…) Para tal, torna-se necessário esboçarmos, ainda que de forma cursiva, o contexto da mudança. Trata-se, na realidade, de uma sociedade tributária simultaneamente do pensamento moderno e pós-moderno, de uma sociedade assente, por um lado, na crença no progresso racional (científico) e, por outro, na percepção de que é necessário, doravante, viver sem grandes certezas, sem um centro decisório único, tentacular e redentor. Trata-se, enfim, de nos adaptarmos a uma diluição mais ou menos irreversível de papéis e de fronteiras.
Posto isto, podemos questionar, juntamente com o autor, o processo de mudança, ou seja, podemos compreender de forma cibernética (aliás, a Educação, como muito bem diz Zabalza, “não é um logaritmo fixo de acções numa sequência rígida” (Cf. Zabalza, Miguel A. (1998). Planificação e Desenvolvimento Curricular na Escola. Lisboa. Edições Asa. p.09) e projectiva o pathos de uma determinada reforma educativa, cujo processo se desenvolve, pois, em três domínios vitais do ensino: o trabalho, o tempo e a cultura (cultura profissional, entenda-se – o que corresponde, na prática, ao conjunto de saberes, de crenças, de representações, de métodos, de exigências, que surgem perspectivados num espírito de colaboração interdisciplinar e/ou de colegialidade)...
Tempo agora para nos debruçarmos sobre opretexto (pré-texto?) da mudança, que, no plano das ideias, corresponde ao mal-estar da modernidade. Em que consiste ao certo este período sócio-histórico (que tem as suas raízes no Iluminismo, na idade da Razão e reforçada pela Revolução Francesa de 1789), subdividido aqui em Modernidade e Modernidade Recente (ou Alta Modernidade, termo utilizado preferencialmente por Anthony Giddens)? Ora, caracteriza-se, acima de tudo, por uma grande ambivalência de signos, pois que a produtividade, a eficiência e a prosperidade só são conseguidas à custa de uma certa desqualificação profissional – e humana. É aliás num contexto da especialização das tarefas, da racionalização dos meios, da optimização do produto (refiro-me, em concreto, a Charles Taylor...), em suma, é num contexto da certeza científica que se dá o advento do Estado-Nação, do Estado-planificado que, entre outras coisas, promove a educação de massas e institucionaliza a escolaridade obrigatória.
Todavia, por volta dos anos 70, as organizações sociais modernas vão sofrer cada vez mais pressões, no sentido de uma maior flexibilidade, de uma melhor capacidade de resposta e de uma crescente dispersão do controlo. Entramos, pois, na Pós-Modernidade (advento esse distinto do Pós-Modernismo, que consiste, segundo o autor, num fenómeno estético, cultural e intelectual), cujo discurso compreende, ao contrário do estádio anterior, a padrões particulares de relações sociais, económicas, políticas e culturais. Em face, pois, deste novo estado de coisas, numa altura em que a natureza anacrónica da escola se torna cada vez mais evidente, coexistem, num contexto gradual de conflitualidade, duas respostas educativas imbricadas uma na outra: uma moderna e outra pós-moderna.
Chegados aqui, impõe-se que abordemos de forma quão económica quanto possível, o contexto da mudança, cuja unidade conceptual se pode resumir, no essencial, à descrição das sete dimensões e aspectos paradoxais da condição pós-moderna, a saber:
• as economias flexíveis, que se caracterizam por tecnologias e processos de trabalho mais flexíveis e sustentados, por um novo tipo de relações entre o produto e o consumo, por uma nova utilização do espaço geográfico e por uma rotação constante nas atribuições das tarefas;
• o paradoxo da globalização, que conduz ao reforço dos currículos nacionais tradicionais e à xenofobia – tornando o professor mais defensivo e consumidor de currículo (desqualificando-o);
• as certezas mortas, fenómeno recorrente num tipo de sociedade em que a ciência perdeu toda e qualquer credibilidade;
• o mosaico fluido, ou seja, um modelo organizacional caracterizado pelo grau de flexibilidade, pela capacidade de adaptação (adaptabilidade), pelo índice de criatividade, pelo sentido de oportunidade, pelo espírito de colaboração, pelo aperfeiçoamento contínuo, pela orientação positiva para a resolução de problemas e pelo empenho na maximização da capacidade de aprender. Podemos afirmar, aliás, juntamente com o sociólogo, que este paradigma modelar das organizações pós-modernas se preocupa com a criação de laços mais significativos e contínuos entre os seus actores (contrariamente às organizações modernas que antevêem uma trajectória de carreira clara e previsível, uma clareza e estabilidade de tarefas e responsabilidades e uma acumulação gradual dos benefícios, decorrentes da antiguidade de serviço);
• o eu sem limites, provocado pelas sociedades da imagem instantânea, o que implica uma perda progressiva da consistência do eu. Dito de outro modo, trata-se de um processo em que a consciência se volatiza, perde pontos de referências concretos – tornando-se auto-referencial;
• a simulação segura, superveniente, como é óbvio, de uma crescente sofisticação tecnológica. Quer isto dizer que a imagem mediatizada (e mediata) da cidade de Vila do Conde, por exemplo, supera e edulcora a cidade física (Vila do Conde), o que significa que, no plano epistemológico, a realidade é bem mais desordenada e incontrolável do que a sua representação semiótica;
• a compressão do tempo e do espaço, que se traduz, em substância, na redução de despesas de produção, na flexibilização optimizada e na comunicação instantânea.
Todos estes significados (paradoxos) se encontram, de acordo com o pensamento do autor, ainda em aberto, pelo que a condição pós-moderna não pode deixar de ser complexa, contraditória, contestada – em suma, transitória. Por definição (tal como indica o prefixo…).
A segunda parte reúne o tempo e o trabalho dos professores, este último perspectivado sob o ângulo da sua intensificação. Mas comecemos pelo primeiro tema-chave, no caso vertente, o tempo, que, aqui, é abordado como constituindo um elemento de estruturação do trabalho docente – e simultaneamente estruturado por estes. Relativamente ao assunto em causa, o autor destaca quatro dimensões, que abaixo se transcrevem e sumariamente se definem:
• o tempo técnico-racional, isto é, o tempo previsto para a distribuição das tarefas, para a planificação e para a programação tecnicamente eficientes. Dito por outras palavras, trata-se do tempo requerido para o(s) efeito(s) que acabamos de referir, tendo em conta obviamente as necessidades educativas do momento, os recursos disponíveis e as competências técnicas dos professores envolvidos. Trata-se, em última análise, de um tempo “público”, “objectivo”, “fixo”;
• o tempo micropolítico, ou seja, o tempo que reflecte as configurações dominantes das redes de poder, como é o caso de disciplinas que vêem aplicada uma matriz nuclear e obrigatória, ao lado de outras áreas do saber disciplinar, em que se verifica uma matriz exploratória e opcional;
• o tempo fenomenológico, quer dizer, aquele que é vivido, aquele que possui uma dimensão essencialmente interior e que, por conseguinte, varia de pessoa para pessoa e de acordo com as ocupações e preocupações do momento. É, por excelência, o tempo característico dos docentes, aquele justamente que reflecte uma visão policrónica do mundo (ao passo que a concepção do tempo dos administradores é tributária de uma forma de estar e de sentir monocrónica – o que não acarreta qualquer juízo de valor, prendendo-se, antes, e de forma exclusiva, com a visão (situacional ou diferida) da sala de aula, pois que o administrador pode muito bem possuir, por exemplo, uma visão policrónica do seu gabinete de trabalho…);
• o tempo sociopolítico, cuja acepção contém dois aspectos importantes, a saber a separação e a colonização. Por separação, entenda-se como algo de inerente aos interesses, à responsabilização e às perspectivas temporais de uns e de outros, quer dizer, dos administradores e dos professores (aliás, a intensificação do trabalho docente advém precisamente deste conflito primário...), enquanto por colonização, se deve entender, em primeira instância, a vigilância crescente dos espaços de retaguarda (em oposição às regiões frontais, em cujo espaço o professor está predominante e profundamente submetido...), o que faz com que o que é privado, espontâneo e imprevisível se torne, sob certas condições, público, controlado, previsível – superiormente colonizado.
É, por conseguinte, com base nesta última dimensão que se pode falar de pacto faustiano, na medida em que os docentes entregam, em troca de um punhado de riquezas mundanas, toda a sua alma profissional – o seu poder discricionário e a sua privacidade.
Falei acima de trabalho e disse que o autor o utiliza como sinónimo muito próximo de intensificação. Convém, agora, referir que o termo deriva das teorias marxistas e traduz, em último recurso, uma espécie de desqualificação e desprofissionalização dos professores que tem a ver, por razões óbvias, com a falta de tempo e o consequente apego, por parte dos docentes, a programas prescritos, a métodos minuciosamente programados, a currículos impingidos em pacotes cientificamente (com)provados – cujos processos, refira-se, vêm (viriam) ajudar e compensar o profissional…
Parece, doravante, óbvio que um tal fenómeno se prende com a definição do verdadeiro papel do professor que, em certos países, é mais dirigido para a aprendizagem e para o desempenho académico, como é o caso da França, enquanto noutros, nomeadamente na Grã-Bretanha e na América do Norte, ele surge imbuído de finalidades sociais e emocionais de bem-estar familiar, de desempenho escolar e, de resto, espartilhado em tarefas tão díspares quanto aquelas que seguem:
• atender alunos da Educação Especial inseridos nas turmas regulares;
• flexibilizar currículos nacionais (tornando-os mais atractivos ao meio local);
• adaptar-se a e/ou assimilar inovações que proliferam, que se entrecruzam e que se neutralizam;
• responder a pressões no sentido da(s) reforma(s);
• gerir a diversidade (progressiva mas constante) das estratégias de avaliação;
• incentivar a crescente consulta/intervenção/participação dos pais e encarregados de educação;
• reequilibrar a dispersão/difusão/(com)fusão de papéis;
• cumprir as obrigações administrativas – e que não são tão poucas quanto poderíamos imaginar!
Quem muito abarca pouco aperta. Mas, justamente, porque o professor não pode levar a cabo aquilo que lhe é exigido, torna-se doravante possível falarmos, em sintonia aliás com o autor, de trajectos de culpa, designadamente, o esgotamento, o abandono do ensino, o cinismo, a negação dos valores, quer os supervenientes da culpa persecutória, que ocorrem, por exemplo, quando fazemos algo de proibido ou eticamente pouco recomendado, quer os advindos da culpa depressiva, que emergem do facto de termos de admitir que magoámos um objecto interno bom ou a sua representação.
Num segundo momento, o autor refere-se às armadilhas da culpa, as quais, segundo o estudioso, se encontram na intersecção de quatro trajectórias possíveis, a saber:
• no empenho exagerado do cuidado para com os outros (neste sentido, a profissão de docente, entre outras, podem ser designadas por care professions);
• na natureza aberta do ensino, uma vez que ensinar não tem fim;
• na prestação de contas e na intensificação da função docente, isto é, na vontade natural em dar uma resposta eficaz e eficiente às exigências crescentes do ensino;
• na persona do perfeccionismo, que exige a separação do aspecto público do aspecto privado, sob pena de o docente ser considerado inadequado, incompetente e incompatível. Na verdade, o professor é visto como uma figura exemplar e deificada, pelo que o queixume, a alusão a factos pessoais, ou o desabafo são práticas excluídas pela natureza da sua profissão...
Face ao exposto, parece fácil perceber as razões profundas desta ansiedade: elas têm a ver com aspectos tão diversos como a competência, a eficácia, a eficiência – em suma, elas prendem-se com a representação que possuem da sua profissão. Aliás, o autor não ignora esta questão central quando afirma que o melhor seria os professores considerarem a sua profissão como uma missão, na medida em que, desse modo, desfariam as incertezas (...) forjando crenças e objectivos comuns. Com efeito, falta definir o perfil do bom professor ou, se quisermos, falta esboçar o ethos profissional do professor ideal, pelo que, à falta de uma base técnico-profissional do exercício da função, lhes resta, aos “profissionaisdo ensino” (as aspas constituem o reconhecimento técnico que o termo encerra uma semanticidade transversal …), recorrerem – hoje mais do nunca – às culturas de apoio, de confiança, de colaboração – em resumo, aos requisitos da colegialidade.
Na terceira – e última – parte da obra, o autor começa por apresentar o individualismo como uma heresia genérica (formal), em contraste com a heresia substantiva ( conteudística), esboçando, em seguida, duas dimensões essenciais das culturas de ensino – o conteúdo e a forma – sendo que, esta última, consiste em padrões típicos de relacionamento e formas de associação entre os seus membros.
Num outro passo, Hargreaves aponta quatro formas de cultura docente, no caso vertente, o individualismo, a colaboração, a colegialidade artificial e a balcanização, perspectivando, no decorrer deste capítulo, a primeira forma de cultura, o individualismo, sob dois aspectos:
• o individualismo enquanto défice psicológico, associado a comportamentos de defesa;
• o individualismo enquanto condição do local de trabalho, surgindo, aqui, como estratégia de adaptação ao ambiente de trabalho.
Deste modo, o individualismo ganha contornos de um fenómeno social e cultural altamente matizado, recuperando aliás alguns aspectos positivos, designadamente a autonomia individual e as recompensas íntimas, ou seja, aquilo que se traduz, na prática, pela satisfação ou alegria que os professores sentem numa determinada situação do ensino/aprendizagem.
Neste particular, deve realçar-se o facto de o nosso autor subdividir o fenómeno do individualismo em três tipos: constrangido, estratégico e electivo, acabando por centrar a sua atenção nesta última subcategoria, ao qual ele acopla três temas-satélite: o cuidado pessoal (intimamente ligado à posse e ao controlo), a individualidade (definida pelo espírito de independência e de iniciativa, pela excentricidade e pela imaginação, para além de se traduzir no exercício de juízos independentes e discricionários ligados à competência – ao invés do individualismo, que se caracteriza pela anarquia e pela atomização social…) e a solidão (perspectivada como uma retirada).
No capítulo subsequente, o autor debruça-se sobre as culturas de colaboração, que constituem, a seu ver, a principal e mais representativa forma de cultura de ensino. Com efeito, a colaboração (ou colegialidade), é considerada como uma conditio sine qua non para um desenvolvimento curricular eficaz e como uma ponte vital entre o desenvolvimento da escola e o crescimento profissional dos professores, podendo assumir várias formas muito diferentes: o ensino em equipa, a planificação conjunta, o treino com pares e as relações de mentores – entre outras.
Importa salientar que a colaboração se pode concretizar em múltiplos espaços sociais, nomeadamente fora da sala de aulas ou na sala de professores, pode, por outro lado, assumir várias versões ou modalidades, como por exemplo, “explorar” ideias e recursos(versões que se devem a Judith Warren Little), dar e receber ajuda e assistência e, por fim, partilhar ideais e materiais. Contudo, a colegialidade, segundo o autor, só muito raramente chega a atingir o espaço-aula...
Quanto ao fenómeno em si, Hargreaves refere duas perspectivas possíveis de abordagem analítica: a cultural e a micropolítica, optando por esta última, dado que a perspectiva micropolítica, ao contrário da perspectiva cultural, dá um maior relevo às diferenças sistémicas de um determinado grupo organizacional, sendo também capaz de levantar toda uma gama de questões sobre os direitos do indivíduo…
É aliás esta perspectiva que o conduz à definição comparada do conceito de colegialidade artificial que mais não é do que o conjunto dos efeitos perversos das culturas de colaboração. Com efeito, enquanto a teoria colaborativa é espontânea, voluntária, orientada para o desenvolvimento e imprevisível, a colegialidade artificial, essa, é construída e regulada do ponto de vista administrativo, é compulsiva, é orientada para a implementação de medidas externas e não-motivadas, ou, dito por outros termos, é fixa no tempo e no espaço e, de resto, previsível.
Em suma, a colegialidade artificial, justamente porque revela ser insensível ao contexto, às especificidades das situações vividas e aos juízos discricionários dos docentes, acarreta graves consequências para o ensino e para os seus actores, o que se traduz, em último recurso, na ineficácia e na ineficiência das práticas em causa. Na realidade, ao esmagar o profissionalismo, ao anular o juízo independente, ao menosprezar, distrair e enganar o docente, a colegialidade artificial surge como uma mera operação de cosmética – quando deveria, antes, devolver aos professores o poder real.
Falamos de colaboração. Falamos obviamente de interacção entre docentes, cujos padrões se desenvolvem de forma particular – seja para unir, seja para dividir. Ora, uma das colaborações que dividem profundamente o docente são aquelas que o autor designa por culturas balcanizadas, cujas realizações concretas são, entre outras, os departamentos disciplinares das escolas do ensino secundário, as quais se caracterizam pela baixa permeabilidade (o que conduz a um isolamento cubicular), pela forte permanência ao longo do tempo (o que faz com que a incomunicabilidade entre outros grupos seja total), pela forte identificação pessoal para com o departamento disciplinar (o que contribui para a magra socialização dos docentes) e pela compleição política (enquanto repositórios de interesses pessoais).
Posto isto, e tendo em conta que os modelos organizacionais das escolas continuam a ser, como ficou dito acima, marcadamente modernos, esta divisão dos professores em pequenos grupos separados limita a acção para a qual o docente é destinado: o cuidado para com os outros. Mas não é tudo. A balcanização suscita, por outro lado, invejas entre as disciplinas ditas académicas e as disciplinas ditas exploratórias, fomenta a divisão entre os que têm acesso facilitado à esfera da tomada de decisão e os excluídos desse mesmo processo, e, enfim, reduz as oportunidades de os professores aprenderem uns com os outros. Deste modo, a balcanização recria o mito da imutabilidade do corpo docente.
Todavia, num mundo pós-moderno rápido, comprimido e complexo, as estruturas balcanizadas têm dificuldade em articularem três aspectos: os recursos humanos necessários, o crescimento profissional contínuo dos docentes e a capacidade de dar resposta às mudanças impostas pela comunidade. O antídoto? Adoptar um outro modelo organizacional – o mosaico fluido – que seja capaz de esbater ou mesmo diluir as lideranças departamentais, as recompensas institucionalizadas e as estratificações de carreira.
Importa, pois, perceber o processo da mudança que, nas suas manifestações superficiais, pode assumir várias formas (reestruturação, reculturação, colaboração ou qualquer outra configuração semelhante). Ora, no que se refere à reestruturação, é importante precisar que, apesar da ambivalência do termo – que tanto pode reforçar a reintrodução do controlo burocrático como o fortalecimento profissional – ele deve promover, em primeira instância, as relações de poder instauradas no contexto escolar. Neste sentido, reestruturar significa empenharmo-nos no desenvolvimento de certos tipos de colaboração, mas também – e sobretudo – transpor tal modelo. Assim, num momento em que enfrentamos novos desafios, torna-se curial discutir e resolver as tensões-chave essenciais existentes tanto na reestruturação educativa como no trabalho de colaboração, a saber:
• visão/voz, que importa reconciliar mais do que prolongar a cacofonia;
• confiança nas pessoas/confiança nos métodos que importa estimular em termos de reconstrução de relações de trabalho, sem todavia reforçar o paternalismo e o paroquialismo (e sem prejuízo da confiança nos métodos sobre a confiança interpessoal);
• estrutura/cultura, tendo em conta que a perspectiva estrutural menospreza as tradições, os pressupostos e as relações de trabalho, enquanto a perspectiva cultural os encoraja justamente.
A reestruturação não representa, todavia, o fim da problematização das questões educativas e, de modo mais abrangente, das questões organizacionais. Trata-se, apenas de um início, isto é, de uma oportunidade para definirmos, em conjunto, novas regras e objectivos que respondam eficaz e eficientemente aos novos desafios. E o modelo do mosaico fluido parece capaz, segundo o autor, de fornecer as bases de uma nova forma de cultura docente. A praxeologia docente encarregar-se-á de confirmar – ou de infirmar – a(s) tese(s) preconizada(s)… Modus probandi!
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