2009/06/12

TRIBUTO A BAUDELAIRE I

encontrei hoje no meu caminho uma velha
sobre uma abrupta rocha
melancolicamente sentada

de face húmida crespa vermelha
permanecia ali imóvel e estática
e apercebi-me desde logo
que ora seus cabelos puxava
ora suas copiosas lágrimas
com um negro trapo enxugava

questionei-a
perguntei-lhe por que chorava
e a velha de olhos doridos arregalados vazios
gritou bem alto
a mágoa que a atormentava

sinta pois esta pele sulcada outrora bela e suave
em malditas pregas encarquilhada envelhecida
observe se assim entender estes cabelos brancos
estas gengivas nuas amarelas descarnadas
estes lábios insípidos enxutos cortados
repare se lhe aprouver nesta fragilidade de flancos
e aqui mostrou-me grave os seus membros descarnados

examine analise sinta perscrute partilhe a minha dor
ou tal como os cães vadios que frequentemente cruzo
grite de medo ou de nojo ou de horror

calou-se por fim a pobre criatura
e de olhos esgazeados
cravados no penedo
ouvia-a de voz fraca trémula gemendo

odeio os homens mais que os animais
porque deles tenho medo
porque deles tenho medo
porque deles tenho medo

hoje encontrei no meu caminho
encarniçadamente sentada sobre uma rocha
uma velha que outrora foi jovem foi bela foi flor

mete dó
não poder anular o tempo antecipar o destino
evitar todo este espectáculo de horror

in Sementes do Acaso




© Manuel Fontão

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