Espaço de partilha, de troca de ideias e de análise crítica da sociedade: PRO TEMPORE.
Espaço de angústia e de inquietação (a hybris) que interroga o outro sobre a condição humana (o pathos): CREDO QUIA ABSURDUM.
Espaço feito de palimpsestos, de narrativas individuais, de arquitexto: POST HOC, ERGO PROPTER HOC.
2009/06/17
ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ
A população de um país bem perto de si decidiu tacita e esmagadoramente votar em branco, em detrimento de uma longa tradição (pseudo)democrática nos aparelhos partidários (p.d.d. , d.d.m. e p.d.e.). Todavia, o aparelho político-partidário, surpreendido por este novo e inédito facto, no seu entender antidemocrático, decide convocar novas eleições num prazo mínimo de oito dias. Não obstante este tour de force sistémico, o fenómeno ganha proporções ainda mais acentuadas – os votos em branco adquirem uma expressão ainda mais significativa – quase escandalosa. Doravante, são as próprias bases do sistema que estão em causa, é o edifício democrático que está em perigo de ruir, pelo que urge tomar medidas adequadas e conformes à ameaça eminente. Assim, o governo resolve, de forma unilateral a autocrática, aplicar todo um conjunto de medidas avulsas e de teor manifestamente repressivo, que vão desde a infiltração de agentes da polícia política, à instauração de processos sumários supervenientes da duvidosa certificação do valor de verde do polígrafo, passando pela intoxicação sistemática dos meios de comunicação social.
Ora, em contraponto a estas decisões arrogantes e incompreensíveis, a população reage com uma lucidez e uma serenidade dignas de registo. Vejamos, pois! O povo havia votado de forma ordeira, tinha revelado, à boca das urnas, uma enorme maturidade cívica e o exercício da cidadania deveria traduzir, por assim dizer, a sua singular vontade – soberana e inquestionável, segundo, aliás, os preceitos da lei constitucionalmente reconhecida... Mas não! O poder político sentiu-se atingido no seu âmago. Sentiu-se provocado por um acto todavia legal e correcto – o voto em branco deveria, outrossim, ser entendido como um mero e inofensivo voto de protesto – e interpretando de forma errónea os dados disponíveis sobre a realidade do momento, decide responder da forma menos recomendável: dando de barato os princípios e os valores que deveriam presidir à sua acção política, decide abandonar a capital à sua sorte, colocar toda uma cidade em autêntico estado de sítio, retirando-lhe toda a protecção policial, sonegando-lhe todos os direitos constitucionalmente outorgados, em suma, deveriam morrer como vermes, já que não se haviam comportado como cidadãos. com o objectivo de que os cidadãos.
Oh sim! Mas em que é consistia um cidadão, aos olhos deste governo corrupto e opressivo? Em que é que consistia um cidadão, no entender da máquina governamental? Um ser acrítico que, chegado o momento das eleições, teria o dever de assumir as suas escolhas política de forma verosímil e de acordo com o bom senso. Um indivíduo que, no acto eleitoral, teria de votar de acordo com uma hipotética tradição dos costumes e usos. Ora, tal não aconteceu. Inexplicavelmente! Assim, e não obstante as disputas políticas mais ou menos estéreis no seio do poder político, cria-se um impasse sem resolução à vista, não fosse a chegada de uma carta, de um cidadão – o primeiro cego – que denuncia a eventual causa de todo aquele estranho fenómeno dos brancosos, designação pejorativa daqueles que votaram em branco. Curiosamente, é neste ponto que o romance muda completamente de rumo: a estratégia, doravante, consiste em recuperar a cegueira havida há quatro anos atrás (cf. intertexto com o Ensaio sobre a Cegueira) e, desse modo, encontrar, custe o que custar, um bode expiatório. Para tal, o ministério do interior concentra todos os seus meios para encontrar eventuais culpados, importa criar a ilusão de que tudo o que acontece de mau (a explosão da estação do metro, ao assassínio do comissário, etc.) é da responsabilidade dos brancosos, pelo que um governo que se auto-intitula de democrático e representativo, se comporta, na realidade, como uma qualquer ditadura. Assim é! A exemplo de todas as ditaduras que a história recenseou, a exemplo de todos os poderes cegos e totalitários de que a humanidade tem sido invariavelmente vítima, o poder instituído revela-se, ao fim e ao cabo, claramente impotente face à marcha inexorável da justeza e da verdade…
Em resumo, o Ensaio sobra a Lucidez poder-se-á claramente dividir duas partes distintas: a primeira, de pendor mais teorético e abrangente, ridiculariza um poder político que não suporta ser legal e constitucionalmente posto em causa, ao passo que a segunda, de teor mais pragmático, põe em marcha um genuíno plano de acção que assenta, em particular, numa investigação policial a cargo de três homens (o comissário, o inspector e o agente de segunda classe), a qual se centra fundamentalmente num grupo restrito de sete pessoas, de onde ressalta a mulher do médico, a “águia-pesqueira” (p. 225). Todavia, o comissário, num assomo de lucidez, recolocará no seu devido lugar os valores e os princípios morais de uma sociedade em crise de identidade, e, desse modo, coloca em evidência o absurdo do governo, ainda que a expensas da sua própria vida: o Providencial recusa-se terminantemente a inculpar uma mulher inocente: “Quando nascemos, quando entramos neste mundo, é como se firmássemos um pacto para toda a vida, mas pode acontecer que um dia tenhamos de nos perguntar Quem assinou isto por mim, eu perguntei” (p. 306).
Sem comentários:
Enviar um comentário