Espaço de partilha, de troca de ideias e de análise crítica da sociedade: PRO TEMPORE.
Espaço de angústia e de inquietação (a hybris) que interroga o outro sobre a condição humana (o pathos): CREDO QUIA ABSURDUM.
Espaço feito de palimpsestos, de narrativas individuais, de arquitexto: POST HOC, ERGO PROPTER HOC.
Dezembro. 27. 2018. Caminho no tabuleiro
superior da Ponte D. Luiz I. E a Sé ali tão perto. Chegado ao largo, vislumbro, lá
em baixo, a porta de entrada da Estação de São Bento, mas, seguindo o meu
itinerário, viro à esquerda. Uma condutora daqueles novos artefactos turísticos
que transportam gente curiosa, gente como nós, ciosa de coisas novas e de
descobertas, olha-me de relance. Interpela-me. Não a mim, vejamos, mas ao
turista, quer dizer, ao consumidor…
Vou absorto. Mas feliz. Diria mesmo:
felicíssimo! E, se me pedissem para definir esse raríssimo estado de espírito,
diria que, em substância, consiste num sentimento de profunda harmonia para
comigo próprio. Que a felicidade, no fundo, mais não é do que reencontro sincero
e honesto connosco.
Sim! Vêm-me, à memória, pedaços
longínquos da minha então Escola Primária. Encavalitam-se sobre o meu presente.
Sobrepõem-se ao fluxo e refluxo de pessoas que vão e de espanhóis que vêm. É
uma paisagem acústica verdadeiramente alucinante: oiço enunciados em
castelhano. Apercebo-me de gente que fala inglês. Há um casal de franceses que,
em três palavras – Que c’est beau! –
resume o contexto e o momento. Há gente de cabelos escandinavos. Gente de carapinha.
Gente de cabelos ruivos. Gente de cabelos brancos. Gente de cabeça rapada.
Continuo a subir em direção à Sé. E, na
minha mente, desfilam imagens de batas brancas. E, de repente, recordo a D.
Octávia – a minha professora primária [como então se dizia...]. Revejo o meu querido livro de leitura, e,
em particular, o poema “A Moleirinha”:
Casa-museu de Guerra Junqueira. Lamento! A visita não correspondera, de todo, às
minhas expectativas. Esperava poder observar alguns manuscritos, o
o seu estilo caligráfico, a sua produção
escrita – em suma, os seus livros. Esperava – por que não? – poder ouvir a
música de “A Moleirinha”, na sua versão original. Esperava poder rever, por
exemplo, um retrato a óleo do autor, um friso cronológico da sua atividade
literária, um retrato portentoso do poeta e escritor. Ora, tudo quanto fiquei a
saber, foi que Guerra Junqueiro havia tido não um, mas dois descendentes, sendo
que o segundo, creio que uma criatura do sexo feminino, nunca havia sido
vista em público, em razão direta da sua deficiência…
Saí tristemente a cogitar se aquela
criatura terá existido, um pouco à laia do pensamento fenomenológico:... Mas vejamos! Uma flor,
uma pedra, uma árvore que não foi, ainda, objeto de observação por parte do outro,
essa flor, essa pedra, essa árvore existe, em termos fenomenológicos?... Mas o
existencialismo, como já dizia Sartre, não é um humanismo?...
Ouvi, claramente ouvido,
o depoimento da Senhora Presidente do Instituto do Mundo Lusófono, e, como não
pertenço à classe dos invejosos e dos maledicentes, não lhe vou, por certo, perguntar
acerca da forma e do modo como chegou até aqui. Ce ne sont pas mes oignons, entende?...
Contudo, o fundo da
questão levantado pela Sra. Presidente é tudo menos claro e objetivo – e explico
porquê...
A Sra. Presidente do
Instituto do Mundo Lusófono, nome pomposo, que, confesso, desconhecia, conhece
algum país do mundo – e repito – conhece algum país do mundo, cara Sra.
Presidente, que pague em duplicado o ensino de uma determinada disciplina, devidamente inserida no processo de ensino e de aprendizagem, quer na sua
fonte, quer no país alvo?...
Eu explico-lhe, cara
Senhora Presidente, que eu fui Leitor da Universidad Central de Venezuela [Caracas]
e Coordenador EPE designado para as Américas do Sul e afins – e, nesta qualidade – de que eu abdiquei, por razões que não cabem nesta explanação, deixe-me indagar o seguinte:
– Quem é que paga o ensino da Língua Francesa desenvolvido em todo o
território português?
– Quem é que paga o ensino da Língua Inglesa desenvolvido em todo o
território português?
– Quem é que paga o ensino da Língua Alemã desenvolvido em todo o
território português?
– Quem é que paga o ensino da Língua Castelhana [Espanhol] desenvolvido em todo o território português?
– Quem paga ao ensino das línguas
periféricas e supervenientes de fluxos migratórios circunstanciais, mas igualmente emergentes?
Eu respondo-lhe, cara Senhora Presidente
do Instituto do Mundo Lusófono, Isabelle Oliveira: é o contribuinte português,
naturalmente generoso, solidário, e, admitamos, um pouco pateta, porquanto,
permita-me, cara Sra. Presidente, colocar a questão do avesso – que, a maior
parte vezes, a melhor compreensão de um determinado assunto surge pelo processo
ad absurdum. Eis, pois, o mesmo rol de questões,
mas perspetivado pelo lado oposto [que, na circunstância, é o mesmo], pois que
o contribuinte/pagador é, também ele, o mesmo:
– Quem é que paga o ensino da Língua Portuguesa desenvolvido em todo
o território francês, via leitores, professores, coordenadores EPE?
– Quem é que paga o ensino da Língua Portuguesa desenvolvido em todo
o território inglês, via leitores, professores, coordenadores EPE?
– Quem é que paga o ensino da Língua Portuguesa desenvolvido em todo
o território alemão, via leitores, professores, coordenadores EPE?
– Quem é que paga o ensino da Língua Portuguesa desenvolvido em todo
o território espanhol, via leitores, professores, coordenadores EPE?
Sejamos honestos, cara Sra. Presidente! Procure no mapa um país linguisticamente tão generoso quanto o nosso – não o encontrará, por certo. E sabe porquê? Porque não existe! Assim como não encontrará um país com uma rede diplomática tão abrangente e tão universal quanto a nossa. E, no fundo, sabe, é isto que me dói! Não perceberem a enorme, a imensa, a incomensurável GENEROSIDADE do contribuinte português! Também lhe pode chamar PALERMICE. C’est selon, étant donné que vous vivez en France ! Justement... un pays incommensurablement plus riche que nous– et pourquoi ne vous retournez-vous vers votre pays d’accueil ?
Amicalement,
Manuel Fonseca Fontão
Remarque: à propos de romantisme envers toutes les langues du monde, je vous dédie cette belle musique - et surtout le poème qui s'y attache d'une façon impressive... Ainsi que j'ai à vous adresser, en guise de plaisanterie, le dicton portugais, selon lequel: Ó ESTRELA! QUERES COMETA? ...
Sou
de opinião de que a figura da reprovação deveria traduzir uma situação puramente
excecional, ou, melhor ainda, sonho com a sua natural abolição, porquanto nenhum ser
humano a priori deveria ser forçado a
entrar, e, sobretudo, a permanecer dentro de uma espécie de colete de forças a que se dá,
pomposamente, o nome, de sistema de ensino. Aliás, tenho para mim que o Estado,
enquanto rede de poder sistémico e tentacular, não se deveria arvorar em
paladino da Educação, espécie de consubstanciação do pensamento único, mas, bem
pelo contrário, deveria colocar à disposição dos seus concidadãos, toda uma
panóplia de opções educacionais mais ou menos descentralizadas e eletivas.
Sejamos
claros! Salvo alguns dispositivos alternativos e supletivos a este estado de
coisas, os Estados das civilizações coetâneas comportam-se, na prática, como
verdadeiros sistemas totalitários e ditatoriais, porquanto não têm qualquer
pejo em sacrificar a unidade familiar ao todo regimental, neste sentido que não
reconhecem o direito das famílias a poder educar a sua prole segundo as suas
próprias leis e de acordo com os preceitos da sua genealogia. Significa isto
que os estados pós-modernos, usurpadores das liberdades individuais e a
pretexto do coletivo, pretendem, acima de tudo, erigir-se em norma absoluta da
ductilidade, e, uma vez reconhecida esta estratégia de legitimação do poder
instituído, todas as crianças deverão, por conseguinte, ser capazes de
ultrapassar, ao longo de um percurso predefinido pelo legislador, um
determinado algoritmo de provas-modelo [barreiras], e, além disso, estar aptas a responder de forma mais
ou menos favorável aos ditames impostos pelos aparelhos teoréticos engendrados a
montante. Tudo isto, de resto, sob pena de o espécime ser, eventualmente,
sancionado pela justiça. Que, como se sabe, a frequência da escolaridade obrigatória configura um caso de polícia...
Posto
isto, parece-me óbvio que estamos perante uma das múltiplas formas de
colonização por parte dos novos Estados, que, numa primeira fase, começaram por
subtrair os mancebos à célula familiar para fins militares, e, numa fase ulterior – esta –, aliena
os seus filhos, para os educar segundo as suas próprias regras e os seus princípios
mais ou menos especiosos. Significa isto, enfim, que o cidadão, situado a meia
distância entre a despersonalização e o exílio, se vê a braços com o exercício de uma
violência tutelar mais ou menos difusa, e, por isso mesmo, altamente nefasta,
porquanto se institui como negação antropológica do fenótipo: os seus filhos
pertencem-lhe, certo, mas em razão direta das necessidades e dos caprichos da
tutela…
Ora, vem
tudo isto a propósito da recente entrevista
da Presidente do Conselho Nacional de Educação, Maria Emília Brederode, que,
infelizmente, trouxe, uma vez mais, à superfície, vários equívocos que
grassam, desde há algumas décadas a esta parte, em matéria de educação. E o
primeiro consiste na acusação de que a cultura da reprovação se traduziria numa
aprendizagem pelo medo... tirada esta, senhores, tão ao [contra]gosto
da teoria dos reflexos condicionados saída, em guisa de latido, das
experiências pavlovianas. Nada de mais errado e contrário ao saber experiencial
do ser humano, razão pela qual importa, sobretudo, que não nos deixemos
embriagar com palavras de largo espectro – espécie de porta-estandartes
linguísticos – mas ocas de sentido e vazias de conteúdo. É que, vejamos, em
que consiste o medo? Mas, afinal de contas, não estamos perante um universal do homem, que ganha forma quando
colocado em situação de incerteza, de dúvida, de preocupação com o seu devir, e,
por conseguinte, gerador de uma certa angústia perante do desconhecido? Expulsemos,
se assim entendermos, o medo, a angústia, o irracional pela janela – ele, o
irracional, entrar-nos-á portas adentro, já dizia Voltaire. E, em última
análise, não compete ao ensino e à aprendizagem – quer escolar, quer
existencial – preparar o espécime dúctil para o real, para o concreto, para o
tangível, em suma, para a própria vida? De que falamos então? E de que ensino nos
arrogamos, afinal de contas? De um conjunto de ações exclusivamente orientadas
para o lúdico, para a indulgência, para o júbilo, para o riso mais ou menos
pantagruélico e patético, deixando olimpicamente na sombra a outra metade do
ser humano? Mas que falácia esta de pintar o real de acordo com os caprichos da
posição dominante, deixando no prego o elemento disfórico e disruptivo da
existência – a ser resgatado com juros de mora um pouco mais a frente?...
De
resto, outro grande logro da Presidente do Conselho Nacional de Educação,
quiçá, o maior de todos eles, é associar, de forma algo leviana, o insucesso –
isto é, a tal cultura
do chumbo–, à vertente economicista e à visão mercantil do ensino. É que,
vejamos, afirmar um tal princípio ideológico é reconhecer, antes de mais, o primado das
finanças sobre o pedagógico. É sobrevalorizar a vertente financeira em prejuízo
do todo curricular. É inverter os dados primevos da equação. Em suma, é subverter
tudo aquilo que está em jogo – e, lembremo-nos que aquilo que, aqui, está em
discussão é fornecer ao cozinheiro ovos bastantes para a confeção da omelete.
Dito
isto, importa esclarecer que o chumbo
não é, contrariamente à opinião de Brederode, uma questão circunscrita ao
contexto-aula. Nem tampouco ao espaço escolar stricto sensu. Nem se resume, enfim, a uma qualquer hermenêutica mais
ou menos especiosa das hierarquias intermédias. Não. A cultura da reprovação,
ou seja, o chumbo, na expressão da
Presidente do Conselho Nacional de Educação, prende-se, antes, com a
ambiguidade retórica emanada pela tutela, que, por um lado, obriga o cidadão a
sentar-se durante doze anos num qualquer banco de escola, sob a ameaça física da
polícia, e, por outro, apregoa aos quatro ventos e em guisa de liberalidade
ideológica, um punhado de teses assentes na má-fé e na desonestidade
intelectual. Mas também tem a ver com a imposição de um currículo desfasado no
tempo e no espaço, neste sentido que a sua matriz conteudística obedece mais a um
cortejo de interesses de paróquia e corporativista do que a um estudo sério sobre as
necessidades reais do tecido social. Mas também se deve a uma conceção
programática de inspiração cartesiana, assente, no essencial, numa coleção de materiais
a lecionar de forma mais ou menos superficial e esquizofrénica, na medida em que obriga o
discente a abandonar uma determinada área temática sem sequer ter tido o tempo
de se familiarizar com o estado da questão. Mas também é função da tirania da normatividade,
que, a exemplo do mundo da moda, pretende uniformizar aquilo que é, por
natureza, diverso e plural. E, como se tudo isto não bastasse, deparamo-nos,
uma vez mais, com uma tutela sequiosa de mudança, que, a pretexto de tudo e de
nada, recria e forma e reforma e deforma, muitas vezes, socorrendo-se de velhas
teorias, mas travestidas de pós-modernidade, como por exemplo as teses ancestrais
da flexibilização curricular, para depois – e ao arrepio das suas próprias [meso-]orientações – certificar
implacavelmente o produto final em vários pontos do segmento educativo. Aliás, é esta mesma tutela que, a montante, apela sub-repticiamente para o facilitismo e
que, depois, pela porta dos fundos, vem culpar as escolas de terem inflacionado
as classificações dos seus alunos. É esta mesma tutela que, a montante, acusa os atores de
inflexibilidade, mas que, ao virar da esquina, faz dos exames nacionais e do
seu correspondente processo de seriação, um verdadeiro caso de polícia. E, no final da linha,
se quiséssemos apontar o dedo à génese de toda esta paranoia, teríamos, uma vez
mais, de citar a tutela, cujos representantes máximos estão apenas preocupados
em deixar a sua marca impressiva, espécie de assinatura de autor, sem
perceberam que um bom gestor não é aquele que muda tudo... porque sim, mas aquele que reformula apenas o que se revela disfuncional…
Por
fim, e para atalharmos caminho, vamos, pois, ao essencial da questão, a saber,
que o suprarreferido chumbo é, na sua essência, função do disfuncionamento do
aparelho político que, cioso de seu poder tentacular, se aventura em assuntos
que não são da sua competência. Dito por outras palavras: ao político, pede-se-lhe
que execute a vontade dos povos – mas que não tenha a veleidade de se
substituir aos seus anseios e às suas legítimas aspirações. Ora, este princípio axiológico aplica-se a fortiori ao assunto em causa. É que a questão da educação,
e, correlativamente, a conceção de currículo e o diagnóstico das necessidades
de aprendizagem de uma qualquer comunidade, qualquer que ela seja, são da
responsabilidade direta da filosofia da educação, razão pela qual toda e
qualquerreforma curricular deveria, antes de mais, traduzir o rol de necessidades ressentidas pelos povos –isto sem qualquer intervenção externa e desmotivada do poder político. Com efeito, que sabe o poder político acerca do complexo quadro em que se inscreve a configuração de um determinado currículo? Que legitimidade tem a classe política para repensar toda uma panóplia de questões, como por exemplo, [i] a
definição mais ou menos explícita dos objetivos que deverão ser prosseguidos, [ii] o peso específico da tradição curricular a incluir numa eventual reestruturação sistémica, [iii] o tipo de currículo
[aberto ou fechado] a selecionar, [iv] o modelo de organização [centrado em disciplinas
ou em áreas temáticas] a veicular, [v] a seleção das matérias e respetivos conteúdos, [vi] a forma como os atores do sistema educativo deverão participar, [vii] as
medidas de apoio à mudança do todo institucional, etc.? Ora, de tudo quanto ficou dito, nada se compagina,
como se verifica, com o poder político, cujos pressupostos assentam, tão-somente, na sua força executiva, ou seja, no cumprimento escrupuloso de um devir ratificado pela comunidade que o terá, tant bien que mal, legitimado...
Posto isto, e em guisa de resumo, devo afirmar que, no essencial, estou completamente de acordo com as teses de Brederode – mas não com
os argumentos carreados. E isto pelo seu caráter falacioso, redutor e contraproducente. Mas também pela
cacofonia que tudo isto provoca. É que, resumamo-nos a preceito, o argumentário apresentado enferma do mesmo mal que os trouxe
à superfície: mais não fazem do que acrescentar um excesso de cor. E de luz. E de
ruído – três erros crassos do sistema de ensino dos nossos dias. Isto para não
falar dos erros proxémicos, em cujo estudo entrariam, em linha direta, os arquitetos,
os engenheiros – entre tantos outros especialistas responsáveis pelo chumbo e pelas novas patologias das sociedades coevas, como por exemplo, a dislexia, a disgrafia, etc. etc. etc.
Le Grand Lemps. Uma pequena povoação escondida, algures,
na Região de Auvergne-Rhone-Alpes. Isère. Canton. Massif Centrral. Turin. Tudo
tão longe – e tudo tão à mão do primeiro comboio da SNCF ou da autoestrada de
largo espectro. E, depois, as grandes cidades ali tão perto, como que a disputarem,
entre si, a presença das gentes locais! De um lado, havia Lyon, por exemplo, com as
suas intermináveis avenidas, o seu cosmopolitismo, a sua carga histórica; do
outro, Grenoble, com a sua orografia tão peculiar, com a sua fisionomia
simultaneamente tão selvagem e tão castiça, ali, justamente, onde nasciam as grandes cordilheiras.
Le Grand Lemps. A meia distância. Sem falar de Bévenais. E de Flachères. E de Beaucroissant. E de tantos e tantos outros lugares bucólicos e fascinantes, que, cada
um à sua maneira, desafiavam o infinito – que mais não era do que uma simples linha do
horizonte permanentemente móvel e sedutora.
Le Grand Lemps. Relembro, hoje, um
episódio singular, ocorrido na escola local, numa altura em que, pasme-se, o
sistema de ensino integrado dava os seus primeiros passos… em França. Perceba-se o escopo: importava, sobretudo, escolarizar uma geração de emigrantes portugueses,
que, ao contrário das anteriores, havia sido segregada. Saint-Denis e Champigny
estavam, por conseguinte, bem presentes na memória visual dos atores políticos –
e não só. Bidonvilles cuja experiência urgia não repetir. A bem de todos.
Le Grand Lemps. Encontro-me numa sala, algures, no topo do edifício.
Todos os alunos presentes e prontos para mais uma sessão bilíngue. Ao fundo,
numa tela, creio que sob a forma de acetatos, passávamos uma série ordenada de
diapositivos, mas de cujo conteúdo não guardo, infelizmente, memória. De repente, a
porta abre-se. Era uma aluna, regularmente inscrita no curso de Português
integrado que fazia a sua entrada. Em grande pranto. Em choro convulsivo. Foi
um alvoroço geral. Mas que se havia passado? Mas que tinha acontecido, afinal de
contas? Mas em que consistia a tragédia, se de tragédia se tratava?...
A rapariga, cujo nome de batismo se perdeu nas trevas do
tempo, tentou explicar-se. Sem êxito. Voltou a tentar. Não conseguiu. Olhámos um para o outro e, não sei por que motivo, acabámos por considerar o assunto assaz grave. Então, decidimos acalmá-la. Decidimos pô-la em segurança, já não sei a que expensas argumentativas. Sei, apenas, que, passado o clímax,
a aluna lá conseguiu pôr as suas ideias em ordem. Primeiro, balbuciou. Depois, voltou a emocionar-se. E voltou, novamente, a soluçar. Enfim, a questão começava, a ganhar corpo. Que, mesmo ali no corredor
de acesso à sala, a sua melhor amiga [de cujo nome não guardo memória] havia ficado espantada quando percebeu que
ela se dirigia para a sala de Português e que, ao que parece, havia lançado ao
seu nariz, em forma de ameaça ou de chantagem emocional:
- Je ne savais pas que tu étais portugaise! [cuja entoação ela fazia, particularmente, incidir nas
duas últimas sílabas].
Fiquei sem ponta de sangue, apesar de bastante jovem. Estava em Le Gand Lemps. O meu
colega, responsável pela componente civilizacional francesa, ficou escarlate. Virou tricolor, diria. Mas o que relembro, sobretudo, foi ter sentido um silêncio
lúgubre na sala. E que pairou, por um momento, no ar. E que, a partir dali, invadia o exterior...
Ah! A aluna, uma loirita de olhos verdes, bem feitinha de
corpo e com um palmo de cara, nunca mais foi vista por aquelas paragens.
Um dia, acabei por encontrar o pai da rapariga num café
local, um homem baixo e entroncado, que, entre dois pequenos tragos de kronenbourg, me confidenciava que, de
facto, a sua filha não tinha recuperado do lamentável episódio, ao mesmo tempo que me
convidava para almoçar, no fim de semana seguinte, na sua casa.
Aceitei simpaticamente o convite. Paguei a rodada [era a minha vez!]. Demorámo-nos mais um bocado, em silêncio, a olhar em redor não sei à procura de quê e acabámos por sair. Já
fora da brasserie, o pai da menina fora brindado, à laia de brincadeira, com um “caraillo!” Eram os seus amigos franceses... de Le Grand Lemps.
Muito se tem falado da natureza hábil ou habilidosade António Costa, sendo que uns defendem que essa
alegada habilidade se prende mais com as competências mínimas de um qualquer
artesão estilo português antigo que
vai remendando, aqui e ali, as costuras do tecido social, ao passo que outros defendem o facto de o
homem consubstanciar, por inteiro, a figura do chico-esperto, quer dizer, o espécime daquela mentalidade tão ao
gosto do nacional-porreirismo e que,
em rigor, se confunde com o tão propalado desenrascanço
lusitano – em suma, tudo aquilo que faz parte de um certo ser português que me convida, de forma mais ou menos brejeira e arteira, a
não respeitar a fila, a não observar a prioridade, a não contemplar um
algoritmo de ações que levem em devida conta os direitos do outro, em resumo, tudo aquilo que sugere passar por cima do meu semelhante…
De resto, não vou dissecar, aqui, a ambivalência semântica
do conceito, pois que, para lá da sua configuração sémica, creio que todo o ser
humano, por mais linear que possa ser, nunca poderá – e ainda bem! – ser circunscrito
a uma mera etiqueta taxonómica, mas, antes pelo contrário, será função de um
sem-número de atributos e de características mais ou menos difusas e que, em
última análise, são função dos seus sonhos, das suas aspirações, dos seus
anseios, das suas fobias – em suma, são o resultado da sua história de vida.
E, de regresso às origens, que percurso político é este,
o de António Costa? Sabemos que, embora sampaísta,
acabaria por entrar na composição do governo de Guterres [na circunstância, como
Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares]; sabemos que foi deputado
europeu e que presidiu ao grupo parlamentar do Partido Socialista; sabemos que,
embora apoiante de Sócrates [de cujo governo fez parte integrante enquanto
Ministro de Estado e da Administração Interna], acabou, tal como Pilatos, por
ir a Évora presidir à cerimónia do lava-pés
e que, no momento oportuno, acabaria por deixar cair o seu antigo mentor. Inexoravelmente! Sabemos,
sobretudo, que António Costa chega a Secretário
Geral do Partido Socialista, em 2014, retirando o tapete ao homem [António
José Seguro] que, até então, havia partido a pedra que lhe aparecera na
íngreme calçada. Que a ração, essa, não é para quem a talha, mas para quem a come. E consome...
Que concluir, desta breve resenha. Ora, que o homem – entenda-se,
aqui, o político – é, por natureza, um calculista. Sinal de inteligência, sem
dúvida. Mas também [e sobretudo] de pragmatismo e de frieza. E, a comprovar
este seu traço idiossincrático, está o facto de António Costa ser – como se tem
reiteradamente comprovado nas suas múltiplas alocuções – um exímio gestor de expectativas,
a começar pela sua recusa em dizer não.
Significa isto que, se quisermos falar de habilidade, ela reside, sobretudo, em
gerir, com mestria, o sistema de faces
do seu interlocutor, neste sentido que Costa evita, a todo o custo, criar
qualquer corte abrupto de expectativas, seguindo, nesta matéria, o princípio
básico das regras de cortesia, cujo teorema se resume ao enunciado axiológico trata-me bem para que seja possível que eu também o faça. Nem mais! Que a relação interlocutiva é, na sua essência, dinâmica. E instável. E precária.
É justamente por isso que se pode falar, com toda a propriedade,
de um homem que sabe negociar, que sabe fazer política, que sabe falar sem se comprometer com o dito, pois que, em substância,
o seu saber fazer político passa, essencialmente. pela gestão da palavra, pelo [des]compromisso
verbal [porquanto, note-se bem, a expressão não abarca as questões de conteúdo, para cuja
vertente o homem se está literalmente borrifando!...]; em suma, António Costa
define-se, sobretudo, pelo seu discurso projetivo, espécie de palavra a ratificar num devir mais ou menos próximo ou longínquo, e, correlativamente, pelo completo
esvaziamento da performatividade da sua prática discursiva, como prova, por exemplo, a
recente questão das touradas
– entre tantas outras ocorrências congéneres.
Ora, tendo em conta o que ficou dito, há algo que, definitivamente, não se
percebe, a saber, a eficácia performativa do seu discurso relativamente à
questão da classe docente, sobretudo, se nos ativermos ao facto, altamente relevante, de que a lei, essa, não o protege, bem pelo contrário: mero erro de análise? Simples erro de cálculo? Enfim,
vertigem puramente suicida, apenas comparável àqueles que, irónica e
fatalmente, teimam em [re]visitar o lugar do crime?...
Não sei, ao certo. Nem isso interessa, neste momento. Mas prometo voltar ao tema. Até porque [per]sigo
a justeza da paremiologia, segundo a qual – e cito: Quem com ferros mata, com ferros morre! Ora, em termos políticos, Seguro, o António I, morreu de forma precoce e sem ter tido acesso ao tempo do desmame. A ver vamos se Costa, o António II, vai assumir uma herança ab-intestato. Entretanto, fiquemos com o Homem de Cro-Magnon de Zazie... espécie de roi des cons!
Vamos
lá saber! Afinal, em que consiste o chavão ser diferente? É
que o ser humano é tão rico e tão variado em todas as suas formas, cores e
modos de ser e de agir, que ninguém, em última análise, poderá aspirar a ser
igual ao seu vizinho do lado – o que implica que todos sejamos diferentes uns dos outros e que, como tal, reivindiquemos a famigerada unicidade do protótipo.
Ainda bem!
Ora,
as diferenças, essas, existem ipso facto em todos os poros da
napa social, estão ostensivamente presentes no nosso quotidiano, e, de resto,
os contextos multimodais do ser diferente significam,
muitas vezes, no mundo coetâneo, ser classificado em função das suas indeléveis
idiossincrasias; assim, se um determinado espécime é, por exemplo, tímido e
fala pouco, então deve tratar-se de uma pessoa esquisita; se, por exemplo, usa
roupas pouco convencionais, então estaremos muito provavelmente perante uma
pessoa assaz estranha; se, por exemplo, segue uma religião diferente daquela
que não se compagina com a do meio em que está inserido,
então constituirá, por certo, um autêntico caso digno de estudo; se,
enfim, a casuística se prende com um espécime estrangeiro, com um negro, com um
paciente vítima de cancro, com um indivíduo com manchas na pele, com alguém que
sofreu a amputação de um membro, com uma criatura – basta! O sujeito em questão
será, aqui ou ali, sujeito a caução. E, na primeira ocasião, logo sancionado.
Como convém!
Lancemos
a análise um pouco mais longe – e mais fundo. Que dizer dos deficientes
físicos, visuais, auditivos e mentais? Que asseverar acerca daqueles que
são, naturalmente, diferentes e que, por inerência própria, se
distinguem dos que se consideram normais? Como encarar, enfim, a deficiência?
Claro
que, num primeiro momento, ela, a deficiência, pode ser entendida como uma
desvantagem, porquanto resulta de uma incapacidade que acaba, in limine,
por impedir o normal desempenho de uma determinada pessoa; depois, e tendo em
conta os padrões em vigor nas sociedades contemporâneas, importa precisar que o
irregular, como por exemplo, o disforme, o dissonante, o anormal, o singular, o
feio, ou seja, aquilo que não observa os padrões em vigor, é, desde logo,
encarado, pelos seus semelhantes, como algo de estranho, de incompetente e de
indigno.
De
resto, esta é, verdade seja dita, a bitola à qual recorremos para classificar o
deficiente físico, o deficiente mental, o negro, o indígena, o estrangeiro, o
pobre, a prostituta, o homossexual – entre tantos casos de figura – e cujas
diferenças não se encaixam, por este ou por aquele motivo, nos padrões de
normalidade e de perfeição criados e impostos pela sociedade.
Posto
isto, importa perceber que o ser diferente, na sociedade
contemporânea, se traduz, de uma ou de outra forma, na incapacidade, ou seja,
na perspetiva assaz redutora, segundo a qual o ser humano é encarado como
alguém de aprioristicamente limitado e sem quaisquer condições que, em tese,
deveriam presidir à sua felicidade intrínseca.
Nada
de mais errado, todavia. E, para melhor elucidar a questão, que não se
compadece com os direitos consignados nos múltiplos diplomas legais, nem,
tampouco, com as premissas teoréticas que promovem, tant bien que mal,
a pretensa mudança, creio ser melhor, antes, perceber a multiplicidade de
formas e de modos como o sentimento de felicidade pode ser sentido – isto,
salvaguardando, como convém, todas as proporções e todos os [pré]conceitos, até
porque, se a felicidade, em si, se erige em universal do ser
humano, já as suas formas de expressão, essas, são conceitos meramente
subjetivos, e, como tal, objeto de relativização.
Vem tudo isto a propósito da vida
destes dois gémeos que – estranhamente ou talvez
não – confessam não aspirar à sua separação, não obstante as
suas dificílimas condições de existência. Lição de vida? Sem dúvida. Mas será que
todos nós não havíamos já percebido que, afinal de contas, a normalidade, i. e.,
aquele registo materializado na previsibilidade de comportamentos e de rotinas,
dificilmente contribui para a realização do outro?...
Primeiro,
deu-se pela falta de um homem que fazia parte de uma assembleia. Depois, percebeu-se
que não havia registo de qualquer falta, que é como quem diz que o faltoso não
estava na galeria, mas era como se lá estivesse. E bastou isto para que o circo descesse à cidade...
Claro que houve logo vozes, maliciosas já se
vê, que se levantaram para afirmar que alguém teria entrado na casa de lavores do relapso.
O homem, esse, na sua dupla qualidade de vítima e de contumaz, queria mandar às malvas o assunto antes que o
assunto o mandasse para um silvado. Mas a pergunta, essa, pôs-se logo de chofre
e com grande alarido: quem é que, afinal, teria violado a casa dos segredos do honrado
senhor? Quem é que teria ousado penetrar nos seus domínios? Quem é que teria desflorado os seus
atributos próprios? Enfim, quem é que se teria introduzido na sua vinha sem a devida vénia? Ele mesmo fez questão de pôr tudo em pratos limpos. Que faltou,
sim senhor! Que não sabe quem, na sua ausência, terá tido acesso às suas coisas.
E, para melhor convencer os ainda incrédulos, o homem, coitado, viu-se obrigado a vir a público, viu-se
constrangido a dar a cara e a abrir o bravo peito às balas! Uff! Que bom ficarmos
a saber, nós, os leigos, que ainda existem deputados assim, impolutos, íntegros e
que servem desinteressadamente a res
publicae...
Em
seguida, veio o chefe da banda do lado dele, homem, também ele, muito honrado e probo
e íntegro, que corroborou publicamente a absoluta confiança no faltoso. E, como
é um homem muito ocupado, ele que anda sempre rio acima, rio abaixo, acabou por
perder o Norte, entrou em considerações contrárias àquilo que havia defendido até então, e, vai daí, acabou por derrubar qualquer tentativa séria de moralização dos costumes, ao referir
que todos nós deveríamos estar um bocadinho acima destas questiúnculas. Irra! Por
que motivo somos sempre, assim, mesquinhos, pequeninos, invejosos? Por que é
que estamos sempre prontos para criar alarde público sobre tudo e sobre nada?
Por que razão estamos sempre a olhar para o telhado do vizinho? Mas que
tendência esta, senhores, para o melodrama! Mas quem nos fez acreditar que o
cortejo de valores, na política, seria um valor categórico? Mas não perceberam
que, apesar de tudo, apesar desta sistemática cruzada contra a impunidade, há,
todavia, uma escala? Não são capazes de entender que, não obstante, esta luta
pela ética na política, existe uma bitola própria e pronta a consumir?
Ora,
como se isso já não fosse suficientemente tragicómico veio, depois, uma
senhora, que falou lá do alto. E anunciou que vinha de longe. Avisou que usaria
as palavras como elas são usadas lá no seu burgo e como eu não sou lá do
seu burgo não fiquei a perceber muito, espécie de litote para esconder a minha
ignorância nestas coisas de variação diatópica, diafásica e diastrática. E, sem
mais delongas, pôs orgulhosamente os seus lábios, grandes e truculentos, no trombone,
sem se ralar, de resto, com as questões de género, porquanto acabou por dividir
as mulheres em duas categorias sexualmente distintas: as virgens ofendidas e as
outras, aquelas que não são virgens ofendidas. Só não percebi por que motivo deixava
os homens de fora destes comportamentos disruptivos, e, de resto, a pobre
senhora, se calhar até o terá feito sem que eu tenha percebido, todavia, a sua douta dilucidação.
Passemos. O que realmente importa dizer é que a senhora, de porte teso, falou
rude. Rude e grosso, Decretou, desde logo, o vernáculo em uso na sua terra. Disputou, logo
ali, o timbre dos homens, muito ao gosto das viragos que lhe disputavam a força,
e, de repente, temi pela fragilidade do microfone, fino, delgado, esguio, ali exposto
ao risco de ser, a qualquer momento, engolido pela putativa leiga nestas
questões de informática – a única, afinal de contas, com coragem de assumir, em
público, os seus pecados na matéria. Foi um pasmo geral ouvir a senhora, não
apenas na sua qualidade de déspota, mas, sobretudo, de deputada. E a
acrescentar coisas maravilhosas e magnânimas, ao mesmo tempo que evocava o nome
do seu deus em vão. E, vai daí, ficamos a saber que já não havia virgens lá em casa dela. Que a sua casa era um circo, e, como uma mulher que se preze de ter
tudo lá no sítio certo, acabou por dar o nome
aos bois, afirmando, altissonante, que, sim, havia iniciado uma sessão lá com as coisas privadas e privativas do seu colega e que tudo, precisou ela, tudo – imagine-se – por mera inadvertência. Por amor
ao trabalho colaborativo, por certo. Haja, pois, decoro, que a curiosidade, lá diz o ditado, matou
o gato e tu, ó Malhadinhas, que deixas a tua pobre Brízida em casa e andas a
correr mundo em busca de aventuras com as matronas das adegas, desde o Alto
Minho ao Algarve, em guisa de pícaro, não achas esta história mais estranha que
todas aquelas que vais contando por onde passas?
Ah!
Falta falar do dono da casa. Que decidiu entrar pela porta grande do hemicirco [com perdão para o amálgama!], e, fingindo que de nada sabia da vida dos seus correlegionários, lá veio, com
mãos de ferro e voz de barítono, dizer coisas muito sensatas e muito bonitas de se ouvir.
Que havia comportamentos que deveriam ser observados. Que havia normas a
respeitar. Que havia uma ética que importava promover. Enfim, vestiu, por uma
vez, a pele do chefe da banda dos contrarrevolucionários [que, levado pela
enxurrada, foi encontrado num lamaçal, dizem as má-línguas, a falar alemão...]. Mas creio que ninguém levou o patrão da loja muito a sério por perceber que terá proferido estas coisas bonitas e sensatas, não por convicção
republicana, mas simplesmente por estar interinamente do outro lado da
barricada. E, sobretudo, porque importava dizer alguma coisa que fizesse descobrir a careca do seu adversário: o tal que, ao
prometer um banho de ética, acabou, isso sim, metido num cesto de
lacraus. Gente do aparelho, dizem os entendidos...
Resolvi, este último verão, revisitar vários locais de
interesse turístico, e, mais do que isso, de interesse cultural. E, um deles, foi,
muito justamente, a Casa Fernando Pessoa,
que, como se sabe, se encontra sediada na Rua Coelho da Rocha, em Ourique. Ora, não
obstante ter já efetuado uma visita nos idos
de noventa e alguns – e de anos falo – não posso deixar de lamentar que, para
quem chega ao Rato, pela Linha Amarela, fica, desde logo sem quaisquer
referências. Assim, lá segui a minha intuição, quer dizer, o meu sentido de orientação, e, destarte, ladeei a famigerada
sede do Partido Socialista, um pouco mais à frente, virei à direita,
começando a calcorrear a Rua do Sol, que, por ironia, se fazia sentir de forma
assaz abrasadora e cruel; depois, já não sei por que motivo, acabei por entrar na
Rua D. Dinis, rumo à Igreja de Santa Isabel. Ali, no pequeno largo, e, muito
provavelmente, já vencido pela incerteza ou pelo cansaço da subida, decidi
perguntar a um transeunte, na circunstância, um jovem na casa dos trinta anos
se caminhava na direção certa da Casa Fernando Pessoa e eis que o rapaz, para meu
espanto, declarou, alto e bom som, que não
sabia. Sim. Até vivia ali perto – mas, lamentavelmente, não sabia. Ah! Nem queria creditar! E, de súbito, senti, assim, uma espécie de raiva subir por mim acima, pelo que foi necessário encontrar, algures dentro de mim, o rápido equilíbrio… e a razão. Mas, num ápice, o jovem
acabaria por me surpreender, pois, sem demais delongas, abriu o seu tablet,
introduziu as coordenadas que eu pretendia e declarou, com um sorriso largo –
não está longe! Olhe…
E não estava...
Nunca, na minha vida, tinha aspirado a uma informação que
não consistisse numa espécie de algaraviada mais ou menos confusa e num rol de
visagens pouco menos que indecifráveis e fugidias, isto sem abordar, sequer, a
questão estritamente espacial, em cujo número dramático a direita se confunde
facilmente com a esquerda e vice-versa. Fiquei obviamente rendido perante a
estratégia, e, sobretudo, perante a sua eficácia performativa. Assim, agradeci infinitamente a informação, e, no meu
íntimo, teria contribuído, de bom grado, para a partilha do custo de uma
operação de rua tão pertinente… e, literalmente, em cima do joelho.
Mas tal facto não obliterou, todavia, o óbvio: que a casa
museu Fernando Pessoa mereceria, porventura, uma maior visibilidade, i. e., que
a universalidade cultural da obra do poeta justificaria, só por si, uma
sinalética bem mais eficiente e digna da sua importância. Que, da visita em si,
falarei noutra ocasião… isto se a questão vier a propósito e se me aprouver. Porque, quer se
calcorreie este percurso, quer se opte pelo trilho da Basílica da Estrela, o que, em definitivo, se vê lá dentro da Casa é muito pouco Pessoa, aquele que acabaria os seus dias no Hospital São Luís dos Franceses - e que pede os óculos quando a visão, essa, se apagava para todo o sempre... Estávamos a 30 de novembro do ano da graça de 1935.
Todos
sabemos que o Bloco de Esquerda nasceu, não por uma eventual necessidade de
recompor as forças políticas em confronto no xadrez partidário nacional, mas,
bem pelo contrário, por uma inépcia mais ou menos patológica e sistémica do PartidoComunista Português, que, recuado nas suas trincheiras ideológicas, teimava em não [querer] perceber as mudanças do edifício pós-moderno, todavia, assaz evidentes.
De
facto, num mundo em permanente mudança, em que, por um lado, se apregoavam as vantagens
da aldeia dita global, e, por outro, se cantavam loas às especificidades
regionais, ou, dito noutros termos, num tempo em que a consciência individual
se desintegrava, para sempre, do coletivo e em que o engodo pelo lucro engrossava
as candidaturas ao património imaterial da UNESCO, o Bloco, no momento certo,
foi capaz de fazer a diferença entre uma esquerda em declínio, dogmática, retrógrada
e saudosista [consubstanciada no PCP de então] e uma outra, percebida como
progressista e proativa [lembremo-nos que Louçã, o grande protagonista deste
movimento político, chegou a andar de porta em porta a mendigar, pela primeira
vez, um lugar na Assembleia da República…].
Eis,
pois, o contexto do epifenómeno: o Bloco de Esquerda era. Havia nascido de
flancos contra uma esquerda estalinista, totalitária e hermética – como hermética,
totalitária e estalinista era aCortina
de Ferro. E foi crescendo, não sem alguma desconfiança interna. Do mesmo
modo que foi procurando a sua identidade própria, assente, no essencial, na
renovação, na irreverência e na provocação. E se, em boa verdade, procurássemos
um denominador comum desse doloroso desenvolvimento, poderíamos convocar este
facto singular que a consolidação do BE se ficou, sobretudo, a dever à adesão
dos intelectuais menos conservadores, que, cansados do ensimesmamento político,
terão apostado menos num novo partido do que numa base ideológica inovadora e
capaz de derrubar os dogmas de então, ou seja, a adesão assemelhava-se mais a um
movimento de simpatia do que a um partido político, o que significa, em última
análise, que o aderente entendia fazê-lo mais como simpatizante do movimento do
que como militante de um novo partido.
Ora,
parece-me que, doravante, o Bloco de Esquerda pretende abraçar novos desafios,
na circunstância, afirmar-se como um partido de poder – e não, apenas, de contrapoder. Congratulo-me por isso,
porquanto a ambição, desde que regrada [cf. Costa vs Seguro], parece-me perfeitamente natural e legítima: um partido,
qualquer que ele seja, terá sempre como escopo máximo, a governação – e o BE não
poderia obviamente fugir à regra. Estratégia de emancipação? Sem dúvida. Fica apenas no ar
a dúvida se a Coordenadora do BE, Catarina Martins, terá percebido as origens do
partido, sumariamente acima descritas, e, sobretudo, se terá percebido a
verdadeira matriz da sua base de sustentação e de crescimento, a saber, os
vários segmentos da sociedade que, fiéis aos seus pergaminhos ideológicos, não
lhe perdoarão a negligência a que foram votados neste epílogo da Geringonça. Que, tendo em conta a ousadia
e a frieza com que foram presenteados, nomeadamente, os professores, poderão enjeitar, em sede própria, esta
tentativa de aburguesamento e de cujo banquete, ainda que frugal, foram ilegalmente proscritos, devido, em grande parte, à amnésia calculista dos partidos ditos minoritários... um pouco à laia dos
pressupostos behavioristas, ou melhor, pavlovianos.