2019/03/02

"A Moleirinha" da minha infância


     Dezembro. 27. 2018. Caminho no tabuleiro superior da Ponte D. Luiz I. E a Sé ali tão perto. Chegado ao largo, vislumbro, lá em baixo, a porta de entrada da Estação de São Bento, mas, seguindo o meu itinerário, viro à esquerda. Uma condutora daqueles novos artefactos turísticos que transportam gente curiosa, gente como nós, ciosa de coisas novas e de descobertas, olha-me de relance. Interpela-me. Não a mim, vejamos, mas ao turista, quer dizer, ao consumidor…

     Vou absorto. Mas feliz. Diria mesmo: felicíssimo! E, se me pedissem para definir esse raríssimo estado de espírito, diria que, em substância, consiste num sentimento de profunda harmonia para comigo próprio. Que a felicidade, no fundo, mais não é do que reencontro sincero e honesto connosco.
Sim! Vêm-me, à memória, pedaços longínquos da minha então Escola Primária. Encavalitam-se sobre o meu presente. Sobrepõem-se ao fluxo e refluxo de pessoas que vão e de espanhóis que vêm. É uma paisagem acústica verdadeiramente alucinante: oiço enunciados em castelhano. Apercebo-me de gente que fala inglês. Há um casal de franceses que, em três palavras – Que c’est beau! – resume o contexto e o momento. Há gente de cabelos escandinavos. Gente de carapinha. Gente de cabelos ruivos. Gente de cabelos brancos. Gente de cabeça rapada.

     Continuo a subir em direção à Sé. E, na minha mente, desfilam imagens de batas brancas. E, de repente, recordo a D. Octávia – a minha professora primária [como então se dizia...]. Revejo o meu querido livro de leitura, e, em particular, o poema “A Moleirinha”:

       Pela estrada plana, toc, toc, toc,      
       Guia o jumentinho uma velhinha errante.
       Como vão ligeiros, ambos a reboque,
       Antes que anoiteça, toc, toc, toc,
       A velhinha atrás, o jumentinho adiante!...

       Toc, toc, a velha vai para o moinho,
       Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
       E contudo alegre como um passarinho,
       Toc, toc, e fresca como o branco linho,
       De manhã nas relvas a corar ao sol.

       Vai sem cabeçada, em liberdade franca,
       O jerico ruço duma linda cor; 
       Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
       Tange-o, toc, toc, a moleirinha branca
       Com o galho verde duma giesta em flor.

     Casa-museu de Guerra Junqueira. Lamento! A visita não correspondera, de todo, às minhas expectativas. Esperava poder observar alguns manuscritos, o
o seu estilo caligráfico, a sua produção escrita – em suma, os seus livros. Esperava – por que não? – poder ouvir a música de “A Moleirinha”, na sua versão original. Esperava poder rever, por exemplo, um retrato a óleo do autor, um friso cronológico da sua atividade literária, um retrato portentoso do poeta e escritor. Ora, tudo quanto fiquei a saber, foi que Guerra Junqueiro havia tido não um, mas dois descendentes, sendo que o segundo, creio que uma criatura do sexo feminino, nunca havia sido vista em público, em razão direta da sua deficiência…

     Saí tristemente a cogitar se aquela criatura terá existido, um pouco à laia do pensamento fenomenológico:... Mas vejamos! Uma flor, uma pedra, uma árvore que não foi, ainda, objeto de observação por parte do outro, essa flor, essa pedra, essa árvore existe, em termos fenomenológicos?... Mas o existencialismo, como já dizia Sartre, não é um humanismo?...


2019/03/01

A generosidade do contribuinte português à luz da mentalidade [ainda] imperial


Ouvi, claramente ouvido, o depoimento da Senhora Presidente do Instituto do Mundo Lusófono, e, como não pertenço à classe dos invejosos e dos maledicentes, não lhe vou, por certo, perguntar acerca da forma e do modo como chegou até aqui. Ce ne sont pas mes oignons, entende?...

Contudo, o fundo da questão levantado pela Sra. Presidente é tudo menos claro e objetivo – e explico porquê...

A Sra. Presidente do Instituto do Mundo Lusófono, nome pomposo, que, confesso, desconhecia, conhece algum país do mundo – e repito – conhece algum país do mundo, cara Sra. Presidente, que pague em duplicado o ensino de uma determinada disciplina, devidamente inserida no processo de ensino e de aprendizagem, quer na sua fonte, quer no país alvo?...

Eu explico-lhe, cara Senhora Presidente, que eu fui Leitor da Universidad Central de Venezuela [Caracas] e Coordenador EPE designado para as Américas do Sul e afins – e, nesta qualidade  de que eu abdiquei, por razões que não cabem nesta explanação, deixe-me indagar o seguinte:

– Quem é que paga o ensino da Língua Francesa desenvolvido em todo o território português?
– Quem é que paga o ensino da Língua Inglesa desenvolvido em todo o território português?
– Quem é que paga o ensino da Língua Alemã desenvolvido em todo o território português?
– Quem é que paga o ensino da Língua Castelhana [Espanhol] desenvolvido em todo o território português?
– Quem paga ao ensino das línguas periféricas e supervenientes de fluxos migratórios circunstanciais, mas igualmente emergentes?

Eu respondo-lhe, cara Senhora Presidente do Instituto do Mundo Lusófono, Isabelle Oliveira: é o contribuinte português, naturalmente generoso, solidário, e, admitamos, um pouco pateta, porquanto, permita-me, cara Sra. Presidente, colocar a questão do avesso – que, a maior parte vezes, a melhor compreensão de um determinado assunto surge pelo processo ad absurdum. Eis, pois, o mesmo rol de questões, mas perspetivado pelo lado oposto [que, na circunstância, é o mesmo], pois que o contribuinte/pagador é, também ele, o mesmo:

– Quem é que paga o ensino da Língua Portuguesa desenvolvido em todo o território francês, via leitores, professores, coordenadores EPE?
– Quem é que paga o ensino da Língua Portuguesa desenvolvido em todo o território inglês, via leitores, professores, coordenadores EPE?
– Quem é que paga o ensino da Língua Portuguesa desenvolvido em todo o território alemão, via leitores, professores, coordenadores EPE?
– Quem é que paga o ensino da Língua Portuguesa desenvolvido em todo o território espanhol, via leitores, professores, coordenadores EPE?


Sejamos honestos, cara Sra. Presidente! Procure no mapa um país linguisticamente tão generoso quanto o nosso – não o encontrará, por certo. E sabe porquê? Porque não existe! Assim como não encontrará um país com uma rede diplomática tão abrangente e tão universal quanto a nossa. E, no fundo, sabe, é isto que me dói! Não perceberem a enorme, a imensa, a incomensurável GENEROSIDADE do contribuinte português! Também lhe pode chamar PALERMICE. C’est selon, étant donné que vous vivez en France ! Justement... un pays incommensurablement plus riche que nous – et pourquoi ne vous retournez-vous vers votre pays d’accueil ?

Amicalement,

Manuel Fonseca Fontão



Remarque: à propos de romantisme envers toutes les langues du monde, je vous dédie cette belle musique - et surtout le poème qui s'y attache d'une façon impressive... Ainsi que j'ai à vous adresser, en guise de plaisanterie, le dicton portugais, selon lequel: Ó ESTRELA! QUERES COMETA? ...


2018/11/24

No radar [VI] - a questão do chumbo de Brederode


Sou de opinião de que a figura da reprovação deveria traduzir uma situação puramente excecional, ou, melhor ainda, sonho com a sua natural abolição, porquanto nenhum ser humano a priori deveria ser forçado a entrar, e, sobretudo, a permanecer dentro de uma espécie de colete de forças a que se dá, pomposamente, o nome, de sistema de ensino. Aliás, tenho para mim que o Estado, enquanto rede de poder sistémico e tentacular, não se deveria arvorar em paladino da Educação, espécie de consubstanciação do pensamento único, mas, bem pelo contrário, deveria colocar à disposição dos seus concidadãos, toda uma panóplia de opções educacionais mais ou menos descentralizadas e eletivas.
Sejamos claros! Salvo alguns dispositivos alternativos e supletivos a este estado de coisas, os Estados das civilizações coetâneas comportam-se, na prática, como verdadeiros sistemas totalitários e ditatoriais, porquanto não têm qualquer pejo em sacrificar a unidade familiar ao todo regimental, neste sentido que não reconhecem o direito das famílias a poder educar a sua prole segundo as suas próprias leis e de acordo com os preceitos da sua genealogia. Significa isto que os estados pós-modernos, usurpadores das liberdades individuais e a pretexto do coletivo, pretendem, acima de tudo, erigir-se em norma absoluta da ductilidade, e, uma vez reconhecida esta estratégia de legitimação do poder instituído, todas as crianças deverão, por conseguinte, ser capazes de ultrapassar, ao longo de um percurso predefinido pelo legislador, um determinado algoritmo de provas-modelo [barreiras], e, além disso, estar aptas a responder de forma mais ou menos favorável aos ditames impostos pelos aparelhos teoréticos engendrados a montante. Tudo isto, de resto, sob pena de o espécime ser, eventualmente, sancionado pela justiça. Que, como se sabe, a frequência da escolaridade obrigatória configura um caso de polícia...

Posto isto, parece-me óbvio que estamos perante uma das múltiplas formas de colonização por parte dos novos Estados, que, numa primeira fase, começaram por subtrair os mancebos à célula familiar para fins militares, e, numa fase ulterior – esta –, aliena os seus filhos, para os educar segundo as suas próprias regras e os seus princípios mais ou menos especiosos. Significa isto, enfim, que o cidadão, situado a meia distância entre a despersonalização e o exílio, se vê a braços com o exercício de uma violência tutelar mais ou menos difusa, e, por isso mesmo, altamente nefasta, porquanto se institui como negação antropológica do fenótipo: os seus filhos pertencem-lhe, certo, mas em razão direta das necessidades e dos caprichos da tutela…
   
Ora, vem tudo isto a propósito da recente entrevista da Presidente do Conselho Nacional de Educação, Maria Emília Brederode, que, infelizmente, trouxe, uma vez mais, à superfície, vários equívocos que grassam, desde há algumas décadas a esta parte, em matéria de educação. E o primeiro consiste na acusação de que a cultura da reprovação se traduziria numa aprendizagem pelo medo... tirada esta, senhores, tão ao [contra]gosto da teoria dos reflexos condicionados saída, em guisa de latido, das experiências pavlovianas. Nada de mais errado e contrário ao saber experiencial do ser humano, razão pela qual importa, sobretudo, que não nos deixemos embriagar com palavras de largo espectro – espécie de porta-estandartes linguísticos – mas ocas de sentido e vazias de conteúdo. É que, vejamos, em que consiste o medo? Mas, afinal de contas, não estamos perante um universal do homem, que ganha forma quando colocado em situação de incerteza, de dúvida, de preocupação com o seu devir, e, por conseguinte, gerador de uma certa angústia perante do desconhecido? Expulsemos, se assim entendermos, o medo, a angústia, o irracional pela janela – ele, o irracional, entrar-nos-á portas adentro, já dizia Voltaire. E, em última análise, não compete ao ensino e à aprendizagem – quer escolar, quer existencial – preparar o espécime dúctil para o real, para o concreto, para o tangível, em suma, para a própria vida? De que falamos então? E de que ensino nos arrogamos, afinal de contas? De um conjunto de ações exclusivamente orientadas para o lúdico, para a indulgência, para o júbilo, para o riso mais ou menos pantagruélico e patético, deixando olimpicamente na sombra a outra metade do ser humano? Mas que falácia esta de pintar o real de acordo com os caprichos da posição dominante, deixando no prego o elemento disfórico e disruptivo da existência  a ser resgatado com juros de mora um pouco mais a frente?...

De resto, outro grande logro da Presidente do Conselho Nacional de Educação, quiçá, o maior de todos eles, é associar, de forma algo leviana, o insucesso – isto é, a tal cultura do chumbo –, à vertente economicista e à visão mercantil do ensino. É que, vejamos, afirmar um tal princípio ideológico é reconhecer, antes de mais, o primado das finanças sobre o pedagógico. É sobrevalorizar a vertente financeira em prejuízo do todo curricular. É inverter os dados primevos da equação. Em suma, é subverter tudo aquilo que está em jogo – e, lembremo-nos que aquilo que, aqui, está em discussão é fornecer ao cozinheiro ovos bastantes para a confeção da omelete.

Dito isto, importa esclarecer que o chumbo não é, contrariamente à opinião de Brederode, uma questão circunscrita ao contexto-aula. Nem tampouco ao espaço escolar stricto sensu. Nem se resume, enfim, a uma qualquer hermenêutica mais ou menos especiosa das hierarquias intermédias. Não. A cultura da reprovação, ou seja, o chumbo, na expressão da Presidente do Conselho Nacional de Educação, prende-se, antes, com a ambiguidade retórica emanada pela tutela, que, por um lado, obriga o cidadão a sentar-se durante doze anos num qualquer banco de escola, sob a ameaça física da polícia, e, por outro, apregoa aos quatro ventos e em guisa de liberalidade ideológica, um punhado de teses assentes na má-fé e na desonestidade intelectual. Mas também tem a ver com a imposição de um currículo desfasado no tempo e no espaço, neste sentido que a sua matriz conteudística obedece mais a um cortejo de interesses de paróquia e corporativista do que a um estudo sério sobre as necessidades reais do tecido social. Mas também se deve a uma conceção programática de inspiração cartesiana, assente, no essencial, numa coleção de materiais a lecionar de forma mais ou menos superficial e esquizofrénica, na medida em que obriga o discente a abandonar uma determinada área temática sem sequer ter tido o tempo de se familiarizar com o estado da questão. Mas também é função da tirania da normatividade, que, a exemplo do mundo da moda, pretende uniformizar aquilo que é, por natureza, diverso e plural. E, como se tudo isto não bastasse, deparamo-nos, uma vez mais, com uma tutela sequiosa de mudança, que, a pretexto de tudo e de nada, recria e forma e reforma e deforma, muitas vezes, socorrendo-se de velhas teorias, mas travestidas de pós-modernidade, como por exemplo as teses ancestrais da flexibilização curricular, para depois – e ao arrepio das suas próprias [meso-]orientações – certificar implacavelmente o produto final em vários pontos do segmento educativo. Aliás, é esta mesma tutela que, a montante, apela sub-repticiamente para o facilitismo e que, depois, pela porta dos fundos, vem culpar as escolas de terem inflacionado as classificações dos seus alunos. É esta mesma tutela que, a montante, acusa os atores de inflexibilidade, mas que, ao virar da esquina, faz dos exames nacionais e do seu correspondente processo de seriação, um verdadeiro caso de polícia. E, no final da linha, se quiséssemos apontar o dedo à génese de toda esta paranoia, teríamos, uma vez mais, de citar a tutela, cujos representantes máximos estão apenas preocupados em deixar a sua marca impressiva, espécie de assinatura de autor, sem perceberam que um bom gestor não é aquele que muda tudo... porque sim, mas aquele que reformula apenas o que se revela disfuncional…   

Por fim, e para atalharmos caminho, vamos, pois, ao essencial da questão, a saber, que o suprarreferido chumbo é, na sua essência, função do disfuncionamento do aparelho político que, cioso de seu poder tentacular, se aventura em assuntos que não são da sua competência. Dito por outras palavras: ao político, pede-se-lhe que execute a vontade dos povos – mas que não tenha a veleidade de se substituir aos seus anseios e às suas legítimas aspirações. Ora, este princípio axiológico aplica-se a fortiori ao assunto em causa. É que a questão da educação, e, correlativamente, a conceção de currículo e o diagnóstico das necessidades de aprendizagem de uma qualquer comunidade, qualquer que ela seja, são da responsabilidade direta da filosofia da educação, razão pela qual toda e qualquer reforma curricular deveria, antes de mais, traduzir o rol de necessidades ressentidas pelos povos  isto sem qualquer intervenção externa e desmotivada do poder político. Com efeito, que sabe o poder político acerca do complexo quadro em que se inscreve a configuração de um determinado currículo? Que legitimidade tem a classe política para repensar toda uma panóplia de questões, como por exemplo, [i] a definição mais ou menos explícita dos objetivos que deverão ser prosseguidos, [ii] o peso específico da tradição curricular a incluir numa eventual reestruturação sistémica, [iii] o tipo de currículo [aberto ou fechado] a selecionar, [iv] o modelo de organização [centrado em disciplinas ou em áreas temáticas] a veicular, [v]  a seleção das matérias e respetivos conteúdos, [vi]  a forma como os atores do sistema educativo deverão participar, [vii] as medidas de apoio à mudança do todo institucional, etc.? Ora, de tudo quanto ficou dito, nada se compagina, como se verifica, com o poder político, cujos pressupostos assentam, tão-somente, na sua força executiva, ou seja, no cumprimento escrupuloso de um devir ratificado pela comunidade que o terá, tant bien que mal, legitimado...

    

   Posto isto, e em guisa de resumo, devo afirmar que, no essencial, estou completamente de acordo com as teses de Brederode – mas não com os argumentos carreados. E isto pelo seu caráter falacioso, redutor e contraproducente. Mas também pela cacofonia que tudo isto provoca. É que, resumamo-nos a preceito, o argumentário apresentado enferma do mesmo mal que os trouxe à superfície: mais não fazem do que acrescentar um excesso de cor. E de luz. E de ruído – três erros crassos do sistema de ensino dos nossos dias. Isto para não falar dos erros proxémicos, em cujo estudo entrariam, em linha direta, os arquitetos, os engenheiros  entre tantos outros especialistas responsáveis pelo chumbo e pelas novas patologias das sociedades coevas, como por exemplo, a dislexia, a disgrafia, etc. etc. etc. 





2018/11/18

Le Grand Lemps


Le Grand Lemps. Uma pequena povoação escondida, algures, na Região de Auvergne-Rhone-Alpes. Isère. Canton. Massif Centrral. Turin. Tudo tão longe – e tudo tão à mão do primeiro comboio da SNCF ou da autoestrada de largo espectro. E, depois, as grandes cidades ali tão perto, como que a disputarem, entre si, a presença das gentes locais! De um lado, havia Lyon, por exemplo, com as suas intermináveis avenidas, o seu cosmopolitismo, a sua carga histórica; do outro, Grenoble, com a sua orografia tão peculiar, com a sua fisionomia simultaneamente tão selvagem e tão castiça, ali, justamente, onde nasciam as grandes cordilheiras.
Le Grand Lemps. A meia distância. Sem falar de Bévenais. E de Flachères. E de Beaucroissant. E de tantos e tantos outros lugares bucólicos e fascinantes, que, cada um à sua maneira, desafiavam o infinito – que mais não era do que uma simples linha do horizonte permanentemente móvel e sedutora.

 Le Grand Lemps. Relembro, hoje, um episódio singular, ocorrido na escola local, numa altura em que, pasme-se, o sistema de ensino integrado dava os seus primeiros passos… em França. Perceba-se o escopo: importava, sobretudo, escolarizar uma geração de emigrantes portugueses, que, ao contrário das anteriores, havia sido segregada. Saint-Denis e Champigny estavam, por conseguinte, bem presentes na memória visual dos atores políticos – e não só. Bidonvilles cuja experiência urgia não repetir. A bem de todos.

Le Grand Lemps. Encontro-me numa sala, algures, no topo do edifício. Todos os alunos presentes e prontos para mais uma sessão bilíngue. Ao fundo, numa tela, creio que sob a forma de acetatos, passávamos uma série ordenada de diapositivos, mas de cujo conteúdo não guardo, infelizmente, memória. De repente, a porta abre-se. Era uma aluna, regularmente inscrita no curso de Português integrado que fazia a sua entrada. Em grande pranto. Em choro convulsivo. Foi um alvoroço geral. Mas que se havia passado? Mas que tinha acontecido, afinal de contas? Mas em que consistia a tragédia, se de tragédia se tratava?...
A rapariga, cujo nome de batismo se perdeu nas trevas do tempo, tentou explicar-se. Sem êxito. Voltou a tentar. Não conseguiu. Olhámos um para o outro e, não sei por que motivo, acabámos por considerar o assunto assaz grave. Então, decidimos acalmá-la. Decidimos pô-la em segurança, já não sei a que expensas argumentativas. Sei, apenas, que, passado o clímax, a aluna lá conseguiu pôr as suas ideias em ordem. Primeiro, balbuciou. Depois, voltou a emocionar-se. E voltou, novamente, a soluçar. Enfim, a questão começava, a ganhar corpo. Que, mesmo ali no corredor de acesso à sala, a sua melhor amiga [de cujo nome não guardo memória] havia ficado espantada quando percebeu que ela se dirigia para a sala de Português e que, ao que parece, havia lançado ao seu nariz, em forma de ameaça ou de chantagem emocional:
- Je ne savais pas que tu étais portugaise! [cuja entoação ela fazia, particularmente, incidir nas duas últimas sílabas].

Fiquei sem ponta de sangue, apesar de bastante jovem. Estava em Le Gand Lemps. O meu colega, responsável pela componente civilizacional francesa, ficou escarlate. Virou tricolor, diria. Mas o que relembro, sobretudo, foi ter sentido um silêncio lúgubre na sala. E que pairou, por um momento, no ar. E que, a partir dali, invadia o exterior...

Ah! A aluna, uma loirita de olhos verdes, bem feitinha de corpo e com um palmo de cara, nunca mais foi vista por aquelas paragens.

Um dia, acabei por encontrar o pai da rapariga num café local, um homem baixo e entroncado, que, entre dois pequenos tragos de kronenbourg, me confidenciava que, de facto, a sua filha não tinha recuperado do lamentável episódio, ao mesmo tempo que me convidava para almoçar, no fim de semana seguinte, na sua casa. 
Aceitei simpaticamente o convite. Paguei a rodada [era a minha vez!]. Demorámo-nos mais um bocado, em silêncio, a olhar em redor não sei à procura de quê e acabámos por sair. Já fora da brasserie, o pai da menina fora brindado, à laia de brincadeira, com um “caraillo!” Eram os seus amigos franceses...  de Le Grand Lemps. 


No radar [V] - Costa [In]Seguro


Muito se tem falado da natureza hábil ou habilidosa de António Costa, sendo que uns defendem que essa alegada habilidade se prende mais com as competências mínimas de um qualquer artesão estilo português antigo que vai remendando, aqui e ali, as costuras do tecido social, ao passo que outros defendem o facto de o homem consubstanciar, por inteiro, a figura do chico-esperto, quer dizer, o espécime daquela mentalidade tão ao gosto do nacional-porreirismo e que, em rigor, se confunde com o tão propalado desenrascanço lusitano – em suma, tudo aquilo que faz parte de um certo ser português que me convida, de forma mais ou menos brejeira e arteira, a não respeitar a fila, a não observar a prioridade, a não contemplar um algoritmo de ações que levem em devida conta os direitos do outro, em resumo, tudo aquilo que sugere passar por cima do meu semelhante…
De resto, não vou dissecar, aqui, a ambivalência semântica do conceito, pois que, para lá da sua configuração sémica, creio que todo o ser humano, por mais linear que possa ser, nunca poderá – e ainda bem! – ser circunscrito a uma mera etiqueta taxonómica, mas, antes pelo contrário, será função de um sem-número de atributos e de características mais ou menos difusas e que, em última análise, são função dos seus sonhos, das suas aspirações, dos seus anseios, das suas fobias – em suma, são o resultado da sua história de vida.
E, de regresso às origens, que percurso político é este, o de António Costa? Sabemos que, embora sampaísta, acabaria por entrar na composição do governo de Guterres [na circunstância, como Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares]; sabemos que foi deputado europeu e que presidiu ao grupo parlamentar do Partido Socialista; sabemos que, embora apoiante de Sócrates [de cujo governo fez parte integrante enquanto Ministro de Estado e da Administração Interna], acabou, tal como Pilatos, por ir a Évora presidir à cerimónia do lava-pés e que, no momento oportuno, acabaria por deixar cair o seu antigo mentor. Inexoravelmente! Sabemos, sobretudo, que António Costa chega a Secretário Geral do Partido Socialista, em 2014, retirando o tapete ao homem [António José Seguro] que, até então, havia partido a pedra que lhe aparecera na íngreme calçada. Que a ração, essa, não é para quem a talha, mas para quem a come. E consome...
Que concluir, desta breve resenha. Ora, que o homem – entenda-se, aqui, o político – é, por natureza, um calculista. Sinal de inteligência, sem dúvida. Mas também [e sobretudo] de pragmatismo e de frieza. E, a comprovar este seu traço idiossincrático, está o facto de António Costa ser – como se tem reiteradamente comprovado nas suas múltiplas alocuções – um exímio gestor de expectativas, a começar pela sua recusa em dizer não. Significa isto que, se quisermos falar de habilidade, ela reside, sobretudo, em gerir, com mestria, o sistema de faces do seu interlocutor, neste sentido que Costa evita, a todo o custo, criar qualquer corte abrupto de expectativas, seguindo, nesta matéria, o princípio básico das regras de cortesia, cujo teorema se resume ao enunciado axiológico trata-me bem para que seja possível que eu também o faça. Nem mais! Que a relação interlocutiva é, na sua essência, dinâmica. E instável. E precária. 
É justamente por isso que se pode falar, com toda a propriedade, de um homem que sabe negociar, que sabe fazer política, que sabe falar sem se comprometer com o dito, pois que, em substância, o seu saber fazer político passa, essencialmente. pela gestão da palavra, pelo [des]compromisso verbal [porquanto, note-se bem, a expressão não abarca as questões de conteúdo, para cuja vertente o homem se está literalmente borrifando!...]; em suma, António Costa define-se, sobretudo, pelo seu discurso projetivo, espécie de palavra a ratificar num devir mais ou menos próximo ou longínquo, e, correlativamente, pelo completo esvaziamento da performatividade da sua prática discursiva, como prova, por exemplo, a recente questão das touradas – entre tantas outras ocorrências congéneres.

Ora, tendo em conta o que ficou dito, há algo que, definitivamente, não se percebe, a saber, a eficácia performativa do seu discurso relativamente à questão da classe docente, sobretudo, se nos ativermos ao facto, altamente relevante, de que a lei, essa, não o protege, bem pelo contrário: mero erro de análise? Simples erro de cálculo? Enfim, vertigem puramente suicida, apenas comparável àqueles que, irónica e fatalmente, teimam em [re]visitar o lugar do crime?...

Não sei, ao certo. Nem isso interessa, neste momento. Mas prometo voltar ao tema. Até porque [per]sigo a justeza da paremiologia, segundo a qual – e cito: Quem com ferros mata, com ferros morre! Ora, em termos políticos, Seguro, o António I, morreu de forma precoce e sem ter tido acesso ao tempo do desmame. A ver vamos se Costa, o António II, vai assumir uma herança ab-intestato

Entretanto, fiquemos com o Homem de Cro-Magnon de Zazie... espécie de roi des cons!



2018/11/17

No radar [IV] - a real questão da diferença

Vamos lá saber! Afinal, em que consiste o chavão ser diferente? É que o ser humano é tão rico e tão variado em todas as suas formas, cores e modos de ser e de agir, que ninguém, em última análise, poderá aspirar a ser igual ao seu vizinho do lado – o que implica que todos sejamos diferentes uns dos outros e que, como tal, reivindiquemos a famigerada unicidade do protótipo. Ainda bem!
Ora, as diferenças, essas, existem ipso facto em todos os poros da napa social, estão ostensivamente presentes no nosso quotidiano, e, de resto, os contextos multimodais do ser diferente significam, muitas vezes, no mundo coetâneo, ser classificado em função das suas indeléveis idiossincrasias; assim, se um determinado espécime é, por exemplo, tímido e fala pouco, então deve tratar-se de uma pessoa esquisita; se, por exemplo, usa roupas pouco convencionais, então estaremos muito provavelmente perante uma pessoa assaz estranha; se, por exemplo, segue uma religião diferente daquela que não se compagina com a do meio em que está inserido, então  constituirá, por certo, um autêntico caso digno de estudo; se, enfim, a casuística se prende com um espécime estrangeiro, com um negro, com um paciente vítima de cancro, com um indivíduo com manchas na pele, com alguém que sofreu a amputação de um membro, com uma criatura – basta! O sujeito em questão será, aqui ou ali, sujeito a caução. E, na primeira ocasião, logo sancionado. Como convém!
Lancemos a análise um pouco mais longe – e mais fundo. Que dizer dos deficientes físicos, visuais, auditivos e mentais? Que asseverar acerca daqueles que são, naturalmente, diferentes e que, por inerência própria, se distinguem dos que se consideram normais? Como encarar, enfim, a deficiência?
 Claro que, num primeiro momento, ela, a deficiência, pode ser entendida como uma desvantagem, porquanto resulta de uma incapacidade que acaba, in limine, por impedir o normal desempenho de uma determinada pessoa; depois, e tendo em conta os padrões em vigor nas sociedades contemporâneas, importa precisar que o irregular, como por exemplo, o disforme, o dissonante, o anormal, o singular, o feio, ou seja, aquilo que não observa os padrões em vigor, é, desde logo, encarado, pelos seus semelhantes, como algo de estranho, de incompetente e de indigno. 
De resto, esta é, verdade seja dita, a bitola à qual recorremos para classificar o deficiente físico, o deficiente mental, o negro, o indígena, o estrangeiro, o pobre, a prostituta, o homossexual – entre tantos casos de figura – e cujas diferenças não se encaixam, por este ou por aquele motivo, nos padrões de normalidade e de perfeição criados e impostos pela sociedade.
Posto isto, importa perceber que o ser diferente, na sociedade contemporânea, se traduz, de uma ou de outra forma, na incapacidade, ou seja, na perspetiva assaz redutora, segundo a qual o ser humano é encarado como alguém de aprioristicamente limitado e sem quaisquer condições que, em tese, deveriam presidir à sua felicidade intrínseca. 
Nada de mais errado, todavia. E, para melhor elucidar a questão, que não se compadece com os direitos consignados nos múltiplos diplomas legais, nem, tampouco, com as premissas teoréticas que promovem, tant bien que mal, a pretensa mudança, creio ser melhor, antes, perceber a multiplicidade de formas e de modos como o sentimento de felicidade pode ser sentido – isto, salvaguardando, como convém, todas as proporções e todos os [pré]conceitos, até porque, se a felicidade, em si, se erige em universal do ser humano, já as suas formas de expressão, essas, são conceitos meramente subjetivos, e, como tal, objeto de relativização.

Vem tudo isto a propósito da vida destes dois gémeos que – estranhamente ou talvez não – confessam  não aspirar à sua separação, não obstante as suas dificílimas condições de existência. Lição de vida? Sem dúvida. Mas será que todos nós não havíamos já percebido que, afinal de contas, a normalidade, ie., aquele registo materializado na previsibilidade de comportamentos e de rotinas, dificilmente contribui para a realização do outro?... 

2018/11/12

Os lacraus do PSD


     Primeiro, deu-se pela falta de um homem que fazia parte de uma assembleia. Depois, percebeu-se que não havia registo de qualquer falta, que é como quem diz que o faltoso não estava na galeria, mas era como se lá estivesse. E bastou isto para que o circo descesse à cidade...



Resultado de imagem para assembleia da republica     Claro que houve logo vozes, maliciosas já se vê, que se levantaram para afirmar que alguém teria entrado na casa de lavores do relapso. O homem, esse, na sua dupla qualidade de vítima e de contumaz, queria mandar às malvas o assunto antes que o assunto o mandasse para um silvado. Mas a pergunta, essa, pôs-se logo de chofre e com grande alarido: quem é que, afinal, teria violado a casa dos segredos do honrado senhor? Quem é que teria ousado penetrar nos seus domínios? Quem é que teria desflorado os seus atributos próprios? Enfim, quem é que se teria introduzido na sua vinha sem a devida vénia? Ele mesmo fez questão de pôr tudo em pratos limpos. Que faltou, sim senhor! Que não sabe quem, na sua ausência, terá tido acesso às suas coisas. E, para melhor convencer os ainda incrédulos, o homem, coitado, viu-se obrigado a vir a público, viu-se constrangido a dar a cara e a abrir o bravo peito às balas! Uff! Que bom ficarmos a saber, nós, os leigos, que ainda existem deputados assim, impolutos, íntegros e que servem desinteressadamente a res publicae...  

     Em seguida, veio o chefe da banda do lado dele, homem, também ele, muito honrado e probo e íntegro, que corroborou publicamente a absoluta confiança no faltoso. E, como é um homem muito ocupado, ele que anda sempre rio acima, rio abaixo, acabou por perder o Norte, entrou em considerações contrárias àquilo que havia defendido até então, e, vai daí, acabou por derrubar qualquer tentativa séria de moralização dos costumes, ao referir que todos nós deveríamos estar um bocadinho acima destas questiúnculas. Irra! Por que motivo somos sempre, assim, mesquinhos, pequeninos, invejosos? Por que é que estamos sempre prontos para criar alarde público sobre tudo e sobre nada? Por que razão estamos sempre a olhar para o telhado do vizinho? Mas que tendência esta, senhores, para o melodrama! Mas quem nos fez acreditar que o cortejo de valores, na política, seria um valor categórico? Mas não perceberam que, apesar de tudo, apesar desta sistemática cruzada contra a impunidade, há, todavia, uma escala? Não são capazes de entender que, não obstante, esta luta pela ética na política, existe uma bitola própria e pronta a consumir?

     Ora, como se isso já não fosse suficientemente tragicómico veio, depois, uma senhora, que falou lá do alto. E anunciou que vinha de longe. Avisou que usaria as palavras como elas são usadas lá no seu burgo e como eu não sou lá do seu burgo não fiquei a perceber muito, espécie de litote para esconder a minha ignorância nestas coisas de variação diatópica, diafásica e diastrática. E, sem mais delongas, pôs orgulhosamente os seus lábios, grandes e truculentos, no trombone, sem se ralar, de resto, com as questões de género, porquanto acabou por dividir as mulheres em duas categorias sexualmente distintas: as virgens ofendidas e as outras, aquelas que não são virgens ofendidas. Só não percebi por que motivo deixava os homens de fora destes comportamentos disruptivos, e, de resto, a pobre senhora, se calhar até o terá feito sem que eu tenha percebido, todavia, a sua douta dilucidação. Passemos. O que realmente importa dizer é que a senhora, de porte teso, falou rude. Rude e grosso, Decretou, desde logo, o vernáculo em uso na sua terra. Disputou, logo ali, o timbre dos homens, muito ao gosto das viragos que lhe disputavam a força, e, de repente, temi pela fragilidade do microfone, fino, delgado, esguio, ali exposto ao risco de ser, a qualquer momento, engolido pela putativa leiga nestas questões de informática – a única, afinal de contas, com coragem de assumir, em público, os seus pecados na matéria. Foi um pasmo geral ouvir a senhora, não apenas na sua qualidade de déspota, mas, sobretudo, de deputada. E a acrescentar coisas maravilhosas e magnânimas, ao mesmo tempo que evocava o nome do seu deus em vão. E, vai daí, ficamos a saber que já não havia virgens lá em casa dela. Que a sua casa era um circo, e, como uma mulher que se preze de ter tudo lá no sítio certo, acabou por dar o nome aos bois, afirmando, altissonante, que, sim, havia iniciado uma sessão lá com as coisas privadas e privativas do seu colega e que tudo, precisou ela, tudo  imagine-se  por mera inadvertência. Por amor ao trabalho colaborativo, por certo. Haja, pois, decoro, que a curiosidade, lá diz o ditado, matou o gato e tu, ó Malhadinhas, que deixas a tua pobre Brízida em casa e andas a correr mundo em busca de aventuras com as matronas das adegas, desde o Alto Minho ao Algarve, em guisa de pícaro, não achas esta história mais estranha que todas aquelas que vais contando por onde passas?  

     Ah! Falta falar do dono da casa. Que decidiu entrar pela porta grande do hemicirco [com perdão para o amálgama!], e, fingindo que de nada sabia da vida dos seus correlegionários, lá veio, com mãos de ferro e voz de barítono, dizer coisas muito sensatas e muito bonitas de se ouvir. Que havia comportamentos que deveriam ser observados. Que havia normas a respeitar. Que havia uma ética que importava promover. Enfim, vestiu, por uma vez, a pele do chefe da banda dos contrarrevolucionários [que, levado pela enxurrada, foi encontrado num lamaçal, dizem as má-línguas, a falar alemão...]. Mas creio que ninguém levou o patrão da loja muito a sério por perceber que terá proferido estas coisas bonitas e sensatas, não por convicção republicana, mas simplesmente por estar interinamente do outro lado da barricada. E, sobretudo, porque importava dizer alguma coisa que fizesse descobrir a careca do seu adversário: o tal que, ao prometer um banho de ética, acabou, isso sim, metido num cesto de lacraus. Gente do aparelho, dizem os entendidos...


2018/11/11

Casa Fernando Pessoa


Resultado de imagem para Casa Fernando PessoaResolvi, este último verão, revisitar vários locais de interesse turístico, e, mais do que isso, de interesse cultural. E, um deles, foi, muito justamente, a Casa Fernando Pessoa, que, como se sabe, se encontra sediada na Rua Coelho da Rocha, em Ourique. Ora, não obstante ter já efetuado uma visita nos idos de noventa e alguns – e de anos falo – não posso deixar de lamentar que, para quem chega ao Rato, pela Linha Amarela, fica, desde logo sem quaisquer referências. Assim, lá segui a minha intuição, quer dizer, o meu sentido de orientação, e, destarte, ladeei a famigerada sede do Partido Socialista, um pouco mais à frente, virei à direita, começando a calcorrear a Rua do Sol, que, por ironia, se fazia sentir de forma assaz abrasadora e cruel; depois, já não sei por que motivo, acabei por entrar na Rua D. Dinis, rumo à Igreja de Santa Isabel. Ali, no pequeno largo, e, muito provavelmente, já vencido pela incerteza ou pelo cansaço da subida, decidi perguntar a um transeunte, na circunstância, um jovem na casa dos trinta anos se caminhava na direção certa da Casa Fernando Pessoa e eis que o rapaz, para meu espanto, declarou, alto e bom som, que não sabia. Sim. Até vivia ali perto – mas, lamentavelmente, não sabia. Ah! Nem queria creditar! E, de súbito, senti, assim, uma espécie de raiva subir por mim acima, pelo que foi necessário encontrar, algures dentro de mim, o rápido equilíbrio… e a razão. Mas, num ápice, o jovem acabaria por me surpreender, pois, sem demais delongas, abriu o seu tablet, introduziu as coordenadas que eu pretendia e declarou, com um sorriso largo – não está longe! Olhe
 E não estava...

Nunca, na minha vida, tinha aspirado a uma informação que não consistisse numa espécie de algaraviada mais ou menos confusa e num rol de visagens pouco menos que indecifráveis e fugidias, isto sem abordar, sequer, a questão estritamente espacial, em cujo número dramático a direita se confunde facilmente com a esquerda e vice-versa. Fiquei obviamente rendido perante a estratégia, e, sobretudo, perante a sua eficácia performativa. Assim, agradeci infinitamente a informação, e, no meu íntimo, teria contribuído, de bom grado, para a partilha do custo de uma operação de rua tão pertinente… e, literalmente, em cima do joelho.

Mas tal facto não obliterou, todavia, o óbvio: que a casa museu Fernando Pessoa mereceria, porventura, uma maior visibilidade, i. e., que a universalidade cultural da obra do poeta justificaria, só por si, uma sinalética bem mais eficiente e digna da sua importância. Que, da visita em si, falarei noutra ocasião… isto se a questão vier a propósito e se me aprouver. Porque, quer se calcorreie este percurso, quer se opte pelo trilho da Basílica da Estrela, o que, em definitivo, se vê lá dentro da Casa é muito pouco Pessoa, aquele que acabaria os seus dias no Hospital São Luís dos Franceses - e que pede os óculos quando a visão, essa, se apagava para todo o sempre... Estávamos a 30 de novembro do ano da graça de 1935. 

2018/11/10

No radar [III] - As continhas da Cat[a]rina

     Todos sabemos que o Bloco de Esquerda nasceu, não por uma eventual necessidade de recompor as forças políticas em confronto no xadrez partidário nacional, mas, bem pelo contrário, por uma inépcia mais ou menos patológica e sistémica do PartidoComunista Português, que, recuado nas suas trincheiras ideológicas, teimava em não [querer] perceber as mudanças do edifício pós-moderno, todavia, assaz evidentes.
Resultado de imagem para /Catarina_Martins     De facto, num mundo em permanente mudança, em que, por um lado, se apregoavam as vantagens da aldeia dita global, e, por outro, se cantavam loas às especificidades regionais, ou, dito noutros termos, num tempo em que a consciência individual se desintegrava, para sempre, do coletivo e em que o engodo pelo lucro engrossava as candidaturas ao património imaterial da UNESCO, o Bloco, no momento certo, foi capaz de fazer a diferença entre uma esquerda em declínio, dogmática, retrógrada e saudosista [consubstanciada no PCP de então] e uma outra, percebida como progressista e proativa [lembremo-nos que Louçã, o grande protagonista deste movimento político, chegou a andar de porta em porta a mendigar, pela primeira vez, um lugar na Assembleia da República…].
     Eis, pois, o contexto do epifenómeno: o Bloco de Esquerda era. Havia nascido de flancos contra uma esquerda estalinista, totalitária e hermética – como hermética, totalitária e estalinista era a Cortina de Ferro. E foi crescendo, não sem alguma desconfiança interna. Do mesmo modo que foi procurando a sua identidade própria, assente, no essencial, na renovação, na irreverência e na provocação. E se, em boa verdade, procurássemos um denominador comum desse doloroso desenvolvimento, poderíamos convocar este facto singular que a consolidação do BE se ficou, sobretudo, a dever à adesão dos intelectuais menos conservadores, que, cansados do ensimesmamento político, terão apostado menos num novo partido do que numa base ideológica inovadora e capaz de derrubar os dogmas de então, ou seja, a adesão assemelhava-se mais a um movimento de simpatia do que a um partido político, o que significa, em última análise, que o aderente entendia fazê-lo mais como simpatizante do movimento do que como militante de um novo partido.
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     Ora, parece-me que, doravante, o Bloco de Esquerda pretende abraçar novos desafios, na circunstância, afirmar-se como um partido de poder – e não, apenas, de contrapoder. Congratulo-me por isso, porquanto a ambição, desde que regrada [cf. Costa vs Seguro], parece-me perfeitamente natural e legítima: um partido, qualquer que ele seja, terá sempre como escopo máximo, a governação – e o BE não poderia obviamente fugir à regra. 
     Estratégia de emancipação? Sem dúvida. Fica apenas no ar a dúvida se a Coordenadora do BE, Catarina Martins, terá percebido as origens do partido, sumariamente acima descritas, e, sobretudo, se terá percebido a verdadeira matriz da sua base de sustentação e de crescimento, a saber, os vários segmentos da sociedade que, fiéis aos seus pergaminhos ideológicos, não lhe perdoarão a negligência a que foram votados neste epílogo da Geringonça. Que, tendo em conta a ousadia e a frieza com que foram presenteados, nomeadamente, os professores, poderão enjeitar, em sede própria, esta tentativa de aburguesamento e de cujo banquete, ainda que frugal, foram ilegalmente proscritos, devido, em grande parte, à amnésia calculista dos partidos ditos minoritários... um pouco à laia dos pressupostos behavioristas, ou melhor, pavlovianos.